Especial

Poder, carisma… como Thomas Shelby, de Peaky Blinders, poderia ter sido um Castor de Andrade

Por
Irlan Simões, especial para UmDois Esportes
24/02/2021 15:40 - Atualizado: 29/09/2023 20:06
Castor e Shelby.
Castor e Shelby. | Foto: Agência Estado e Reprodução.

Poder, carisma, c̶r̶i̶m̶e̶ ̶o̶r̶g̶a̶n̶i̶z̶a̶d̶o̶, contravenção e violência compõem a história dos dois personagens desse texto. Um real, outro fictício, ambos relacionados a comunidades formadas em vilas operárias de regiões industriais de tempos longínquos. O que o suburbano de carne e osso Castor de Andrade e o working class semi-ficcional Thomas Shelby, de Peaky Blinders, possuem em comum?

ATENÇÃO: o texto abaixo contém spoilers sobre a série Peaky Blinders, da Netflix. 

A série-documental “Doutor Castor” (Globoplay, 2020) resgatou com maestria a controversa história de Castor de Andrade, folclórico financiador do “jogo do bicho” da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A elogiada produção conta, sem muito apego cronológico, a trajetória do famoso bicheiro que atuou como mecenas de duas tradicionais instituições sociais da antiga capital federal, ao longo das décadas de 1960/70/80, com declínio no início dos anos 1990.

Ambas instituições agraciadas com seu mecenato carregam o nome de seus respectivos logradouros: o clube de futebol The Bangu Athletic Club e a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Ainda hoje, a figura do já falecido Castor de Andrade é cultuada na região, com a sua marca pessoal – um singelo castor preto – estampada em muros, camisas e bandeiras.

Alvo de uma idolatria totalmente alheia às narrativas das páginas policiais, o bicheiro é visto como bandido inescrupuloso nas regiões mais nobres da cidade. Mas entre Bangu e Padre Miguel existe outro Castor: o benfeitor altruísta, protetor da comunidade, patrono da alegria de uma região excluída e marginalizada da metrópole.

Relação contraditória – como tudo na vida tende a ser – vista em outro personagem muito famoso e cultuado dos tempos atuais: o gangster inglês Thomas Shelby, líder implacável dos Peaky Blinders e protagonista da série homônima da BBC (atualmente Netflix), que se passa na cidade de Birmingham, em West Midlands, na Inglaterra.

Pelo medo ou pela gratidão, Bangu e Small Heath – região onde os Peaky Blinders viveram na vida real e na ficção –, eram duas comunidades muito parecidas na relação controversa entre o patrono e os populares.

Ainda que inspirado em um personagem real de uma gangue que aterrorizou as slums de Birmingham, o fictício Thomas Shelby possui uma trajetória de ascensão social estrondosa. Assim como Castor de Andrade, montou seu império com base em atividades ilegais, relações íntimas com o submundo do poder, com a criação de empreendimentos industriais reais para falseamento de capitais e através de métodos implacáveis de tratamento de desafetos e – acima de tudo – na capacidade de reverter seus ganhos para o “bem-estar” da comunidade de sua origem.

A série britânica Peaky Blinders se encaminha para a sua sexta temporada – provavelmente a última, antes do longa-metragem prometido para seu encerramento oficial – e deixou muitos amantes do futebol incomodados: como puderam deixar o futebol de fora de uma trama centrada em um bairro operário de Birmingham, um dos mais importantes centros futeboleiros da Inglaterra?

Para além da contravenção

Observe que aqui não estamos fazendo mera correlação casual entre dois gangsters muito queridos em suas localidades, que poderiam utilizar futebol como ferramenta de lavagem de dinheiro e projeção de poder. Sim, há muito disso, mas também há muito mais que isso entre Bangu 1970’s e Small Heath 1920’s.

Apesar da similaridade entre um Mr. Shelby agenciador de apostas ilegais e um Doutor Castor banqueiro do jogo do bicho; os pontos de conexão são muito mais profundos. A começar pelo fato de, assim como Bangu, a localidade de Small Heath também possuiu um clube com seu nome: o Small Heath Alliance, fundado em 1875, era o lado azul de Birmingham.

O clube de região sob domínio dos Peaky Blindes mudaria de nome algumas vezes: se chamaria de Small Heath Football Club até meados de 1905, quando passa a se chamar de Birmingham Football Club. Mas nunca deixou de ser um clube ligado a Small Heath.

O próprio clube original, atual Birmingham City Football Club (nome usado desde 1943) fez um lançamento de uniforme remetendo ao hype da série que trata do seu local de origem, abusando do impecável estilo da gangue, de uma bola de capotão e dos tradicionais tijolos dos muros das fábricas e das casas das vilas operárias da Inglaterra no Entre-Guerras.

  Peça publicitária do Birmingham City Football Club para o lançamento de uniformes da temporada 2019/2020.
Peça publicitária do Birmingham City Football Club para o lançamento de uniformes da temporada 2019/2020.

Um tipo de correlação que a série faz em pouquíssimas, mas valorosas, passagens ao longo dos seus 30 excelentes episódios. Vejamos quais.

No primeiríssimo episódio (e01s01), Grace pergunta a Harry, o então dono do pub The Garrison, o motivo do bar estar tão cheio. Harry responde que eles estavam prestes a ir a St. Andrews. Após Grace achar que se tratava da igreja local, Harry explica que St. Andrews também era o nome do estádio que pertencia aos Blues, o time do qual um dos bebuns era o goleiro e outro o atacante, believe it or not.

Reprodução.
Reprodução.

O então ex-Small Heath e agora recém-Birmingham FC construiu o estádio de St. Andrew ainda em 1906, com capacidade estimada para colossais 75 mil espectadores. Ao que consta, o próprio pub The Garrison realmente existiu, e se isso é de fato verdade, sem dúvidas era ponto de encontro de torcedores. O teórico Garrison está a 500 metros do Saint Andrão. Voltaremos a falar sobre isso mais adiante.

Depois disso, a última menção direta ao futebol (antes da quinta e até então última temporada) é a icônica cena do episódio 2 da quarta temporada (e02s04). Uncle Charlie e Curly recrutam os homens de Aberama Gold para a guerra contra Luca Changretta. Desconfiado, Charlie pergunta a um dos homens: “Quem joga no gol do Villa?” (Aston Villa, o rival do Birmingham FC). O capanga responde: “Dan Tremelling é goleiro dos Blues. Tommy Jackson do Villa”. Aprovado, é um legítimo brummie, pode levar sua arma.

Crédito: Reprodução
Crédito: Reprodução
 Dan Tremelling, goleiro do Blues (já Birmingham FC) e Tommy Jackson, goleiro do Aston Villa. Crédito: reprodução.
Dan Tremelling, goleiro do Blues (já Birmingham FC) e Tommy Jackson, goleiro do Aston Villa. Crédito: reprodução.

Observem que na imagem acima ambos estão retratados em uma espécie de figurinha de álbum, conteúdo que fazia os jogadores povoarem o imaginário popular em um período onde o rádio ainda se consolidava como meio de comunicação de massas.

Já na quinta temporada aparece a figura de Billy Grade, ex-jogador aposentado e cantor, que é utilizado pelo caçula Finn Shelby para manipular jogos de futebol e movimentar apostas. Trata-se de um novo ramo de atividades da gangue, após a crise de 1929, quando os negócios legais do grupo quebram junto com a bolsa de Nova York.

  Billy Grade tomando um aperto de Arthur Shelby. Crédito: Reprodução.
Billy Grade tomando um aperto de Arthur Shelby. Crédito: Reprodução.
  Clubes famosos de todo país estão presentes na lista de clubes cujos  jogos seriam manipulados pela gangue. Crédito: Reprodução.
Clubes famosos de todo país estão presentes na lista de clubes cujos jogos seriam manipulados pela gangue. Crédito: Reprodução.

Ainda que esparsas, as menções ao futebol são bem localizadas e compõem de forma inteligente o ambiente do período. O futebol como mobilizador de sociabilidades, como temática popular cotidiana ou os jogadores como heróis do cidadão comum – já profissionalizados, mas ainda muito próximos das suas comunidades.

Como até os anos 1960, o futebol inglês manteve uma política de teto salarial para os jogadores de futebol, que nos primeiros anos recebiam no máximo (em raros casos) o dobro do recebido por um trabalhador médio de fábrica.

Ou seja, não faltava conhecimento para os roteiristas da aclamada série sobre o papel do futebol naquele contexto histórico. Mas as breves menções passam longe de representar o papel significativo do futebol.

O futebol de lá no futebol de cá

Curiosamente, poderíamos dizer que o Bangu é um clube tipicamente inglês, enquanto o antigo Small Heath seria um tipo de clube bem mais raro na Inglaterra a partir dos anos 1910.

Fundado na fábrica Companhia Progresso Industrial do Brasil em 17 de abril de 1904, o The Bangu Athletic Club foi idealizado por um grupo de técnicos ingleses empregados da fábrica, como aponta o pesquisador Nei Jorge dos Santos Junior, autor do livro “A construção do sentimento local: o futebol nos arrabaldes de Andaraí e Bangu (1914-1923) (Multifoco, 2014).

Possivelmente inspirados por uma prática absolutamente comum na Inglaterra, os imigrantes convenceram os diretores da fábrica a financiarem o time como forma de congregar e mobilizar os operários. Iniciativa que estimulou a associação de diversos moradores da região ao clube, dentre eles os próprios operários. Segundo o historiador João Malaia, isso se deu graças aos custos acessíveis da mensalidade: menos de 10% do salário médio à época.

O sucesso do Bangu ainda inspiraria outras iniciativas de clubes fundados por fábricas ou por grupos de operários, como o Andarahy A.C (1909), o Carioca F.C (1907) e o Alliança F.C (1910). Mas observe: apesar de ligado à fábrica, o clube ainda era uma associação civil – formato típico dos clubes brasileiros ainda hoje – e, apesar da relação de patronato, nunca foi uma “propriedade” da Companhia Progresso Industrial.

O Birmingham, por sua vez, havia sido fundado em 1875 como clube de críquete por jovens ligados à igreja Holy Trinity. Esse tipo de agremiação ligada a instituições religiosas foi muito comum nos primórdios do futebol inglês – quase 25% dos clubes fundados à época seguiam esse roteiro.

Apenas na década de 1880 o futebol inglês assistiria a proliferação de muitos “bangus”, ao ponto de gerar um racha no futebol local. Os clubes do Norte buscavam autorização para o emprego de jogadores-operários remunerados, causando a insatisfação dos hegemônicos clubes fundados por jovens da aristocracia, ex-alunos das principais escolas britânicas.

Por conta disso, em 1888, chega-se a um acordo por uma regulamentação da profissão do jogador de futebol, principalmente para conter a inflação dos salários por causa da disputa entre os patronos dos clubes pelos melhores players, redundando no teto salarial anteriormente mencionado.

O Bangu, criado quase duas décadas depois desse evento, seria um filho dileto do padrão inglês de clubes de fábrica. Por conta disso, acabou se destacando como uma agremiação pioneira ao colocar em campo trabalhadores braçais no “futebol oficial” carioca, aquele disputado em ligas. O que já era comum no futebol inglês ainda era um imenso tabu no futebol brasileiro, salvo pelo fato da existência de uma questão racial inevitável nesse processo brasileiro.

Associação e empresa: os caminhos dos patronos

Ainda assim, não seria muito forçado acreditar na possibilidade de ver Thomas Shelby assumir o mesmo papel de Castor de Andrade, comandando um clube de futebol às glórias em plena década de 1920? Não na Inglaterra, onde tudo aconteceu muito antes de qualquer outro lugar do mundo.

Na cidade de Londres, em 1923, pouco antes de Tommy Shelby se casar com Grace, o Estádio de Wembley já havia recebido a lendária White Horse Final entre Bolton Wanderers e West Ham United, com um público estimado em 240 mil pessoas. Em contraste, o Brasil tinha como seu principal praça esportiva o estádio das Laranjeiras, do Fluminense, com capacidade recorde de apenas 25 mil pessoas. Percebe a diferença?

Wembley, na Inglaterra, e Laranjeiras, no Brasil. Crédito: reproduções.
Wembley, na Inglaterra, e Laranjeiras, no Brasil. Crédito: reproduções.

Ainda em 1932, o próprio Birmingham FC registraria um público de 67 mil pessoas no estádio de St. Andrews, em um jogo contra o Everton pela F.A Cup. Ou seja, se estamos falando da Inglaterra dos anos 1920, já estamos tratando da mesma dimensão sócio-cultural e política que o futebol no Brasil atingiria na altura dos anos 1970. Mas tem mais do que isso.

Voltando a 1888, no mesmo ano da profissionalização anteriormente mencionada, há uma nova mudança que muito nos interessa aqui. Ocorreu graças ao aumento dos custos de manutenção de um clube de futebol, causadores de grande preocupação a muitos dos seus envolvidos.

A consequência disso foi algo que os pais dos Peaky Blinders testemunharam na própria vizinhança: o Small Heath FC desponta como o primeiro clube da história a adotar o modelo de companhia limitada, um modelo de sociedade por ações em que cada envolvido se responsabiliza apenas pela parte correspondente à sua participação.

Como o direito anglo-saxão não prevê uma figura de “associação civil” como as que estamos acostumados em outros países, os dirigentes do futebol inglês se valeram dessa solução para se protegerem das inconstâncias típicas do futebol, como observa Luciano Motta, autor de “O mito do clube-empresa”.

Nos anos seguintes, em especial após a Primeira Guerra Mundial – período de formação dos Peaky Blinders –, esse modelo já teria sido adotado por 86 dos 88 clubes ingleses das quatro primeiras divisões na década de 1920, mesmo que fossem raríssimos os casos de retorno financeiro. A ideia sempre foi outra.

 Time do Small Heath FC Limited em 1896, quando Thomas Shelby era uma criança mentalmente sadia de apenas 6 aninhos.
Time do Small Heath FC Limited em 1896, quando Thomas Shelby era uma criança mentalmente sadia de apenas 6 aninhos.

Em grande medida, os participantes dessas companhias eram comerciantes locais, por vezes trabalhadores de classe média, e em certos casos, grupos econômicos interessados em projetar suas marcas.

Como lembra Jim Keoghan , autor do livro “Punk Football: The rise of fan ownership in english football” (Pitch, 2014), o Manchester City foi conhecido ao longo de décadas como “brewers club”, graças ao envolvimento de muitos donos de cervejaria na manutenção da agremiação, estratégia usada como forma de alavancar seus pubs.

Por outro lado, observa Keoghan, na opinião pública imperava uma espécie de dever de responsabilidade social, algo como um “senso comunitário” naqueles que se dedicavam ao sustento de uma instituição como um clube de futebol. Doutor Castor e Mr. Shelby se encontrariam novamente.

Para Castor de Andrade foi relativamente fácil garantir o controle do Bangu, já que seu próprio pai, Seu Zizinho, foi presidente do clube ao longo dos anos 1960. Mas isso obviamente não seria tão simples se ele arriscasse o mesmo em algum clube da Zona Sul carioca, de quadros sociais aristocráticos e tradicionalistas, ou com massas torcedoras mais volumosas.

Já a formação de clubes como companhias limitadas se apresentaria como o atalho perfeito para Thomas Shelby: bastava usar os seus tradicionais métodos para “convencer” alguns acionistas a venderem suas participações na antiga Small Heat F.C Ltd. Nesse modelo jurídico opera uma correlação de forças bem distinta: manda quem soma mais ações.

Castor de Andrade. Crédito: Reprodução.
Castor de Andrade. Crédito: Reprodução.

Parece exagero imaginar um “working class” como Thomas Shelby entrando em um clube esportivo dos anos 1920? Menos do que se imagina.

O londrino “Woolwich Arsenal” (atual Arsenal) registrava cerca de 860 acionistas quando se converteu em companhia limitada em 1893, boa parte deles trabalhadores da fábrica de armas onde o clube foi originado. Um clube à moda Bangu, porém inglês: ao invés de associados, os operários pagaram para ser pequenos acionistas.

Crédito: Reprodução.
Crédito: Reprodução.

O Futebol e a Cidade: uma questão muito pouco compreendida 

Óbvio que o caso do Arsenal é mais extremo, mas pense em perspectiva histórica: Thomas Shelby buscava formas de ascensão social, o poder do futebol estava ali, literalmente ao lado dele: bebendo no Garrison, cruzando o canal a pé pela ponte, ocupando os terraces do St. Andrew nas tardes de sábado.

Dezenas de milhares de trabalhadores aguardando semanalmente a pausa no trabalho cansativo nas fábricas de armas, ou de carros, na metalurgia, nas estações de trem, no comércio formal ou nas lucrativas atividades econômicas da Shelby Brothers Limited.

E caberia perfeitamente no enredo: o auge do Birmingham no período foi o vice-campeonato da FA Cup de 1930/31, coincide com o momento em que Thomas Shelby buscava restabelecer sua posição financeira após a crise de 1929. O “Great Crash” obrigou os Peaky Blinders retomarem as atividades ilegais, para voltar a trabalhar com “dinheiro vivo”. Veja ao vídeo dessa Final.

  Birminghan FC vice-campeão da FA Cup de 1931. Consegue ver o rosto de um Shelby ali?  Crédito: Site oficial do clube.
Birminghan FC vice-campeão da FA Cup de 1931. Consegue ver o rosto de um Shelby ali? Crédito: Site oficial do clube.

Mas o futebol também poderia ter cabido ainda antes: quando decide ingressar na política em 1929, Thomas se mobiliza para concorrer ao posto de "Member of Parliament" pelo distrito de South Birmingham. O que poderia ter sido melhor do que os serviços prestados a um clube de futebol? Não estaríamos mais falando de um poder provisório, associado a um domínio eleitoral pontual; mas definitivamente falando da capacidade de sedução que um clube de futebol – a razão de vida de tanta gente – oferece ao seu mecenas.

 Crédito: reprodução
Crédito: reprodução

No início da trajetória criminosa dos Peaky Blinders, a periférica Small Heath viu mais de 50 mil pessoas lotarem o Estádio de St. Andrew para a semifinal da FA Cup de 1924, entre Newcastle United e Manchester City.

Era um estádio que recebia dezenas de milhares de pessoas por semanas e estava localizado em uma região rodeada por fábricas – como a Birmingham Small Arms (BSA), palco do roubo de armas que está no cerne da primeira temporada – e por vilas operárias, como ocorre em todo processo de popularização do futebol no mundo.

Se o futebol era o “esporte proletário de massa” e “religião leiga” da classe operária, como disse Eric Hobsbawm, então definitivamente o Estádio de St. Andrew era um dos seus templos. E a série Peaky Blinders não explorou isso como podia – ou até devia.

  Planta da Birmingham Small Arms (BSA) e Singer Motors antes do   bombardeio nazista na Segunda Guerra Mundial, em 20 de Novembro de 1940.  Crédito: reprodução.
Planta da Birmingham Small Arms (BSA) e Singer Motors antes do bombardeio nazista na Segunda Guerra Mundial, em 20 de Novembro de 1940. Crédito: reprodução.

Há uma questão mais profunda de contexto. Thomas Shelby já havia estabelecido diversos empreendimentos industriais graças aos serviços sujos prestados à Coroa. Possuía uma montadora de veículos e descolou diversos contratos de fornecimento para o Exército Britânico. Enquanto industrial, se enquadra mais uma vez no perfil típico de dono de clube inglês. Não estamos mais falando de um “qualquer”.

  Frame em que é possível ver o endereço da Shelby Brothers Ltd. – Watery Lane nº 6, Small Heath. 
Frame em que é possível ver o endereço da Shelby Brothers Ltd. – Watery Lane nº 6, Small Heath. 

Durante a pesquisa para esse artigo, tive a felicidade de encontrar um mapa de Small Heath elaborado em 1913 e publicado apenas em 1920. É notável a proximidade do estádio com relação aos outros elementos muito presentes na paisagem de Peaky Blinders: o pub, a linha do trem, os canais, a rua que consta no endereço da Shelby Brothers Ltd...

  Mapa de Small Heath na década de 1910: o pub The Garrison (laranja), a   Watery Lane (amarelo), os canais (azul) e o estádio St. Andrew (verde).   Crédito: reprodução.
Mapa de Small Heath na década de 1910: o pub The Garrison (laranja), a Watery Lane (amarelo), os canais (azul) e o estádio St. Andrew (verde). Crédito: reprodução.

Em contraste da distância entre esses mesmos logradouros, com a famosa Birmingham Small Arms (BSA) – a fábrica mencionada na série como uma região próxima às instalações dos Peaky Blinders – a diferença é considerável, como é possível ver na junção entre partes diferentes do mesmo projeto cartográfico utilizado anteriormente.

 Mapa de Small Heath na década de 1910, com destaque para as instalações da fábrica da Birmingham Small Arms (BSA), em vermelho.  Fonte: https://maps.nls.uk/view/101584672
Mapa de Small Heath na década de 1910, com destaque para as instalações da fábrica da Birmingham Small Arms (BSA), em vermelho.  Fonte: https://maps.nls.uk/view/101584672

Desta forma, é basicamente impossível não imaginar o estádio de St. Andrews como parte do cotidiano de Small Heath na década de 1920, mas ainda mais difícil não perceber a sua centralidade na imagem que aquela comunidade possuía de si mesma. Moradias, fábricas, pub, estádio, canal, trilho do trem... tudo estava compondo simbioticamente o espaço percebido e vivido daquela Small Heath dos Peaky Blinders.

Esse descolamento da centralidade do futebol no ambiente urbano é um equívoco muito comum mesmo para os intelectuais mais conceituados. Não falo apenas da incapacidade de compreender o fenômeno futebolístico na vida urbana, mas especialmente pela dificuldade de compreender os seus impactos reais nas transformações sociais, culturais e políticas de cada contexto histórico.

Isso decorre pela grande dificuldade de perceber o futebol para além do espetáculo. Clubes e estádios extrapolam a existência do futebol para muito além do “evento” jogo de futebol, e o que estamos falando aqui desde o princípio é como é basicamente inviável pensar um lugar como Small Heath sem a influência dos acontecimentos do Birmingham FC, do Estádio de St. Andrew, da massa de torcedores vinculados à região e dos interesses daqueles que financiavam a agremiação.

Se Thomas Shelby não era alguém envolvido com o Birmingham FC, então algum inimigo, concorrente de mercado ou adversário político provavelmente o era. Então isso era a Birmingham South, a Small Heath e a Garrison Lane também.

Assim como ocorre a Castor de Andrade (e outros inúmeros casos de mecenas de clubes), o controle de uma instituição social de grande porte era fundamental para garantir status, adentrar ciclos sociais relevantes, limpar a imagem, conquistar a simpatia popular e... se proteger de inimigos. Thomas Shelby cria diversas instituições de caridade com o nome de sua falecida esposa, exatamente com esse intuito.

  Um dos orfanatos criados por Thomas Shelby para limpar sua imagem. Crédito: reprodução.
Um dos orfanatos criados por Thomas Shelby para limpar sua imagem. Crédito: reprodução.

Com tantas referências excelentes e sem pudor a coisas e eventos reais, por que coube aos autores de Peaky Blinders ignorar o futebol em um momento de efervescência da construção de grandes estádios e do consumo de ingressos, do uso de clubes como forma de projeção de imagem e da consolidação do modelo de companhia limitada nos clubes?

Lá estão Winston Churchill, Oswald Mosley, Jessie Eden, os Sabini, os Billy Boys, o Exército Republicano Irlandês, a Ulster Volunteer Force, os comunistas e a União Soviética, os aristocratas russos, o próprio Al Capone (!), Libs, Cons, Labour, Fascists.... Mas não está um dos indiscutíveis fatores de mobilização de toda aquela comunidade.

Thomas Shelby definitivamente poderia ser um Castor de Andrade britânico. A ficção está aí para ser explorada, quem sabe a moda dos “spin off” não nos apronte uma boa novidade como essa.

O que Castor de Andrade realizou no Bangu está apenas em um dos degraus mais modestos da longa história do uso político de um clube de futebol. A lista é interminável e sempre atualizada. São como os mapas diferentes de um mesmo lugar: apesar das escalas diferentes, todos buscam o mesmo tipo de projeção.

Grandes ditadores (Franco na Espanha, Médici no Brasil), políticos populistas (Berlusconi no Milan, Jesus Gil no Atlético de Madrid), liberais com sede eleitoral (Piñera no Colo-Colo, Macri no Boca), passando pela escala da geopolítica (China) e do soft power (Catar e Abu Dhabi), pequenos aventureiros (Braz no Flamengo, Guimarães no Bahia), marcas poderosas (Crefisa no Palmeiras, SAP no Hoffenhein)...

Thomas Shelby poderia apenas ser mais um deles.

Alguns adendos...

Na publicação que originou esse texto, Kildare Silveira fez uma importante observação: os Shelby eram uma família cigana, grupo social famoso pelo nomadismo. Apesar de transmitir certo “sedentarismo” nos Shelbys, mantendo vínculos com sua rua por anos, a série nunca deixa de frisar as suas relações históricas e identitárias com outras famílias ciganas.

Digamos que, partindo desse pressuposto, seja culturalmente incongruente apostar em um cigano torcedor ou dono de clube – símbolo de identidade e pertencimento. Os interesses maiores em cavalos são fiéis à realidade. O boxe, por sua vez, possui bastante importância na série

Aqui entra outra questão curiosíssima que a série podia ter explorado, ainda que fosse para afastar Thomas Shelby do futebol. Há até hoje em Birmingham uma lenda que ciganos amaldiçoaram o Birmingham FC após serem desalojados do terreno onde foi construído o estádio de St. Andrew. Pelo sim ou pelo não, a lenda valeria mais do que a ausência do futebol no meio da trama. Agradeço Alexandre Soares pela lembrança.

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