Entrevista

Inspirado em Autuori, Tiago Nunes abre caminho para técnicos brasileiros na América do Sul

Por
Fernando Rudnick
20/06/2023 12:04 - Atualizado: 05/10/2023 10:02
Tiago Nunes, técnico do Sporting Cristal
Tiago Nunes, técnico do Sporting Cristal | Foto: Divulgação

No fim de novembro do ano passado, Tiago Nunes deu o primeiro passo para uma planejada mudança de rota na carreira.

O treinador gaúcho, campeão da Sul-Americana (2018) e da Copa do Brasil (2019) pelo Athletico, acertou com o Sporting Cristal, do Peru, surpreendendo no destino após passagens curtas por Corinthians, Grêmio e Ceará.

A ideia era sair de um 'ciclo vicioso' no Brasil, se desafiar e abrir novos mercados. E em pouco mais de seis meses no futebol peruano, o técnico de 43 anos tem aprovado a experiência.

+ Confira a tabela completa da Libertadores

Na Libertadores, conduziu o Cristal por duas eliminatórias até a fase de grupos. Numa chave com favoritos claros como River Plate e Fluminense, mantém Los Celestes sonhando na última rodada – precisam de uma vitória contra o Flu, no Maracanã, para avançarem.

"O principal objetivo era chegar vivo à última rodada, e isso conseguimos, dependemos de nossas forças para uma classificação que não acontece há 27 anos. É um momento muito importante, que estamos desfrutando e sonhando. Se não acontecer de passarmos, continuamos brigando por uma vaga para o mata-mata da Sul-Americana", fala.

No cenário local, a equipe comandada pelo brasileiro terminou o Apertura na segunda colocação. O time perdeu apenas uma vez no campeonato, mas empatou demais e ficou longe do Alianza Lima na classificação.

No meio do caminho, viveu uma crise – seis jogos sem vencer – e teve a saída especulada. "Em qualquer parte do mundo as pessoas exageram muito nas falas", minimiza Nunes, que agora ostenta 11 partidas de invencibilidade.

Em entrevista ao UmDois Esportes, ele detalhou como está sendo seu primeiro trabalho fora do Brasil, falou da inspiração em Paulo Autuori e comentou por que poucos profissionais brasileiros exploram os vizinhos da América do Sul.

Como você resume esse primeiro semestre no Peru? Quanto você evoluiu como profissional nesse período?

Pode ser que tenha pego algumas pessoas de surpresa, mas era algo que eu já vinha me preparando há algum tempo. Eu sempre tive um plano de tentar estar no mais alto nível, seja do meu estado, cidade, país, continente, ou até quem sabe no mais alto nível mundial. Tenho tentado entender a lógica de uma construção de carreira prestando atenção em outros profissionais brasileiros. E uma coisa que tem me chamado atenção é que, de certa forma, o brasileiro não saiu do Brasil, né? Muito por comodismo, é um país com muitos clubes, muita oportunidade, onde se paga bem, especialmente Séries A e B. Mas vinha vislumbrando sair para tentar uma experiência internacional, saber como é estar fora do meu país, ser um estrangeiro trabalhando num cargo de visibilidade, de responsabilidade, e continuar disputando competições internacionais, como Libertadores e Sul-Americana. E também estar em equipes que fossem referência, como é o caso do Sporting Cristal, que está sempre brigando para ser campeão do país. Já melhorei no que diz respeito à adaptação, entender culturalmente como reagem os atletas, as pessoas, que ponto de vista eles têm em relação à continuidade do trabalho, que tipo de buscas têm no que diz respeito aos objetivos locais e internacionais. O próprio idioma e a comunicação, que não é só o que a gente fala, mas o que o outro entende. Então, tem sido uma grande e rica experiência cultural.

Se formos falar de resultados, no cenário local, o Cristal termina o Apertura em 2º lugar, com 9 vitórias, 8 empates e 1 derrota. O que faltou para a conquista? Ficou um gostinho amargo ou dá mais motivação para tentar marcar a história com a conquista do Clausura?

A competição local é muito parelha. Hoje tenho certeza que o Peruano é o torneio mais difícil que disputei em toda carreira, não só pela questão técnica ou desportiva, mas também pelas dificuldades em fatores locais. Enfrentamos equipes de altitude, de 2,800 m a 4.000 m de altura. Têm equipes consideradas de selva também, regiões de muito calor, onde se joga às 13h em locais com temperatura de quase 40ºC. É muito difícil jogar um torneio desses e conseguir ter regularidade. Penso que fizemos um bom torneio tendo em vista a reformulação grande que foi feita, saída de jogadores experientes antes mesmo da minha chegada. É um clube com um projeto de formação de jogadores jovens, nossa média de idade é entre 22 e 24 anos. Jogamos partidas importantes, inclusive na Libertadores, com média de 22,5 anos. Talvez nos faltou um pouco mais de elenco quando tivemos que rodar. E tivemos muitos empates, né? Jogos que deveríamos ter ganho, empates que sofremos no último minuto. No mínimo deveríamos ter mais seis pontos por causa disso. O torneio aqui tem uma particularidade que se define só em novembro, num quadrangular final. É uma caminhada longa, mas temos fé no trabalho e no grupo que temos condição de brigar pelo título.

Houve um momento em que se comentou por aqui que você deixaria o Cristal após uma série sem vitórias. Procede?

Se especulou muita coisa, mas como em qualquer parte do mundo as pessoas exageram muito nas falas. O que aconteceu foi que tivemos uma sequência de seis jogos sem vencer, com três derrotas e três empates. Sendo que dessas três derrotas, duas foram na Libertadores, para Fluminense e para o River Plate. Isso acabou gerando uma instabilidade, uma pressão normal da torcida. Mas em nenhum momento vi alguma intenção da direção em mudar o comando, sempre muito convictos. Até mesmo eu vi uma parte da imprensa dizendo que era difícil avaliar um trabalho em somente seis meses. Mas a gente conseguiu, mesmo com um grupo jovem, sair desse momento, retomar o caminho na temporada e hoje já são 11 jogos sem perder. Penso que, em relação ao Brasil, essa estabilidade é um ponto de diferença dentro de um projeto em que o clube tem muito claro o que espera a médio e longo prazo.

Na Libertadores, você conduziu o Cristal por duas fases eliminatórias e chega à última rodada da fase de grupos ainda vivo, na terceira colocação do grupo, com boas chances de classificação à Sul-Americana. Qual tua avaliação?

Avaliação extremamente positiva por tudo que vivemos até o momento. É algo extremamente raro para o futebol peruano. Para o Cristal, foi a primeira vez que saiu de uma fase prévia e chega até a fase de grupos. Não era algo imaginado no início, mas ficamos fortalecidos porque passamos por duas escolas difíceis, a paraguaia, do Nacional, e a argentina, do Huracán. E depois de caímos no grupo da morte, com Fluminense, River Plate e The Strongest, que é tão temido por seu fator local. O principal objetivo era chegar vivo à última rodada e isso conseguimos, dependemos de nossas forças para uma classificação que não acontece há 27 anos. É um momento muito importante, que estamos desfrutando e sonhando. Se não acontecer de passarmos, continuamos brigando por uma vaga para o mata-mata da Sul-Americana.

O Cristal vai ter de encarar o “time de guerra” contra o Fluminense? Dá pra sonhar com classificação no Maracanã?

Não, não tem nada de time de guerra. Time de guerra foi um só e ficou na história do Furacão. Cada clube tem sua história, suas características, seus jogadores, seu momento, tipo de gestão. É uma tarefa muito difícil ganhar do Fluminense no Maracanã, um momento maravilhoso, equipe consolidada e que precisa do resultado para classificar em primeiro do grupo. Mas nada nos impede de sonhar, de termos a ambição e o propósito que têm norteado nosso trabalho, que é brigar para ser campeão. Colocar o futebol peruano e o Cristal numa vitrine respeitosa do futebol sul-americano. Com muita humildade, queremos fazer uma grande partida, pensar no jogo por partes, o primeiro tempo, o segundo tempo, e daí tentar sair vitoriosos.

Quais as principais características do jogador peruano? Pode citar alguns que têm nível, por exemplo, para jogar no Brasileirão?

São jogadores de ótima técnica, bom controle de bola. São jogadores muito inconscientes assim dizendo, talvez precisem de uma evolução na parte tática, na parte coletiva. Na parte física também. Fisicamente eles não têm a mesma intensidade dos brasileiros, mas são jogadores de muito potencial. Seria injusto citar alguém, temos uma equipe com média de idade baixa, temos no mínimo quatro ou cinco jogadores com alto potencial técnico e com condições de jogar no Brasil. É algo viável, mas tem que desenvolver aspectos para competir internacionalmente e exportar atletas com mais frequência.

Teu objetivo é ser um “novo Paulo Autuori”, no sentido de explorar diversos mercados e ter um nome respeitado em todos os lugares? É uma caminho para tua carreira?

Ser colocado em qualquer comparativo é uma honra, Paulo Autuori é uma inspiração. Agora, ser o novo Autuori é impossível, só existe um. Mas estou caminhando para conseguir melhorar pessoalmente, profissionalmente e adquirir mais experiências variadas e ter oportunidade de ser lembrado sempre, não só no mercado nacional, mas no internacional também. Paulo é um treinador campeão do mundo, que dirigiu seleções. Quem sabe não posso seguir por alguns caminhos que ele já trilhou, reafirmar que existe mercado para o treinador brasileiro e, passo a passo, ir consolidando meu nome.

Tem acompanhado o Athletico e o futebol brasileiro, em geral? Seu nome nunca deixa de ser comentado pela torcida para um eventual retorno ao clube…

Sempre acompanho o futebol brasileiro, sempre que possível vejo jogos, acompanho notícias, mas estou focado aqui e a gente acaba mergulhado em um outro tipo de mercado, o futebol sul-americano, que tem muita influência do futebol argentino. Mas tenho acompanhado e sempre torço para que o Athletico vá bem, dispute e conquiste títulos. É uma etapa que ratifica ainda mais o que fizemos lá atrás. Faço parte um pouquinho dessa história junto com outros tantos profissionais que passaram pelo clube e deixaram sua marca.

Após deixar o Corinthians, você já citava que gostaria de explorar outros mercados e se preparava para isso. Sua ida para o Peru pode ser o marco de uma abertura de mercado para treinadores brasileiros?

Espero que sim, que possa ser um marco, que possa abrir outras portas para profissionais brasileiros. Temos muita gente boa, que trabalha bem, e que às vezes precisa só de uma oportunidade. O que acontece é que poucas vezes a gente acenou com essa disposição de sair do Brasil para competir nos mercados sul-americanos E oxalá possa ser essa uma abertura de mercado para tanta gente. O treinador não se torna internacional só quando trabalha na Europa ou na Ásia, ele se torna quando trabalha primeiro na América do Sul. É um caminho que estou tentando trilhar, disputando competições importantes e disputando títulos nacionais. É uma caminhada em que penso que adquirimos uma experiência diferenciada por competir contra escolas diferentes. Aqui mesmo tem uma série de técnicos argentinos, paraguaios, uruguaios, chilenos que já passaram por aqui também, os próprios treinadores peruanos. Então é uma oportunidade de enfrentar outras escolas e ganhar experiência, ganhando e perdendo jogos.

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Fernando Rudnick é formado em jornalismo e pós-graduado em comunicação esportiva. Sempre repórter, começou a cobrir o dia a dia dos times paranaenses em 2009, quando entrou na Gazeta do Povo. Atualmente, é coordenador do UmDois Es...

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