Said Mollaei, a coragem heroica que merece uma medalha
Os judocas da categoria até 81 quilos entram no tatame nesta terça, dia 27 (no Japão; por aqui as lutas começam já na noite de segunda-feira) e, além do brasileiro Eduardo Yudy, a minha torcida vai para Said Mollaei, o iraniano transformado em mongol, protagonista de uma história de coragem que pode ser o início do fim de uma discriminação absurda no esporte mundial.
No Mundial de judô de 2019, Mollaei defendia seu título, conquistado
um ano antes. Já havia vencido duas lutas quando seu técnico recebeu um
telefonema do vice-ministro de Esportes do Irã, ordenando que Mollaei abandonasse
a disputa, pois havia a possibilidade de ele acabar enfrentando, na final, o
israelense Sagi Muki. E o Irã proíbe terminantemente seus atletas de competir
contra israelenses, em qualquer modalidade. Para não deixar dúvida alguma, o
vice-ministro ainda disse que Mollaei e sua família poderiam ter problemas se a
ordem não fosse seguida.
Mas Mollaei desobedeceu. Depois de conversar até com o presidente da Federação Internacional de Judô (IJF), o iraniano voltou ao tatame. Nas oitavas-de-final, venceu o campeão olímpico, o russo Khazan Khalmursaev; nas quartas, passou pelo canadense Antoine Valois-Fortier. Os iranianos dobraram a aposta e mandaram uma equipe da embaixada do Irã em Tóquio ao local de competição. Um dos iranianos conseguiu ameaçar Mollaei pessoalmente. Enquanto isso, em nova ligação, o presidente do Comitê Olímpico Iraniano dizia que a polícia política do regime estava na casa dos pais do judoca.
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Mesmo assim, Mollaei seguiu lutando. Mas, com os nervos em
frangalhos, perdeu a semifinal para o belga Matthias Casse e o bronze para o
georgiano Luka Maisuradze. O israelense Muki sagrou-se campeão.
Mollaei não voltou a seu país. Conseguiu asilo na Alemanha, onde passou a incorporar o time de refugiados da IJF. No fim de 2019, a Mongólia lhe ofereceu cidadania, e ele aceitou. Depois disso, já lutou até mesmo em Israel, no Grand Prix de Tel Aviv. E o mais importante: faz questão de lembrar que ele e Muki (coincidentemente, o primeiro adversário de Yudy nesta noite) são grandes amigos e agradecer pelo apoio que recebeu do israelense nos momentos mais complicados da carreira.
E o Irã? Depois de anos e anos de uma postura meramente reativa, lançando punições apenas quando a discriminação acontece, as entidades esportivas começaram a fazer a coisa certa. Logo depois do episódio do Mundial de Tóquio, a IJF baniu o Irã de competições internacionais indefinidamente, até que o país assumisse o compromisso de não mais impedir seus atletas de lutar contra israelenses. O Irã recorreu à Corte Arbitral do Esporte, que em março desde ano revogou a punição, alegando que uma suspensão sem duração determinada não tinha base legal e pedindo que a IJF revisse o caso. Em abril, nova suspensão, desta vez por quatro anos, de 2019 até 2023. Não haverá judocas iranianos em Tóquio, mas eles poderão estar de volta em Paris – a não ser que a federação iraniana apronte novamente e force mais uma suspensão.
Há atletas que se recusam a enfrentar israelenses por convicção? Certamente há, mas o caso de Mollaei também mostra que existe coação e ameaça contra os que gostariam de competir
Em 2004, outro judoca iraniano, Arash Miresmaeili, era favoritíssimo ao ouro em sua categoria e tinha sido até o porta-bandeira na cerimônia de abertura, mas curiosamente não conseguiu se manter abaixo dos 66 quilos, sendo proibido de entrar no tatame. Contra quem ele lutaria na primeira rodada? Um israelense, Ehud Vaks. As próprias autoridades desportivas iranianas confirmaram que não foi por acidente que Miresmaeili não se manteve no peso certo, e o judoca ainda recebeu um prêmio em dinheiro idêntico aos dos iranianos que conquistaram medalhas de ouro na Grécia. Isso mostra os extremos a que o Irã chega em sua atitude, mas não é o único país a discriminar israelenses. No Rio, uma judoca da Arábia Saudita também não fez sua primeira luta, contra uma adversária das Ilhas Maurício, para evitar um confronto contra uma israelense na segunda rodada. Síria, Líbano, Jordânia, Argélia, Tunísia, Kuwait e Indonésia também já boicotaram israelenses em algum momento neste século.
Em todos esses casos, não aconteceu nada, ou a resposta não foi suficiente para impedir novos episódios; afinal, a discriminação já começou nestes Jogos Olímpicos de Tóquio. O argelino Fethi Nourine abandonou a competição para não ter de enfrentar o sudanês Mohamed Abdalarasool na primeira rodada da categoria até 73 quilos, realizada entre domingo à noite e segunda de manhã (horário do Brasil) – se passasse para a fase seguinte, seu adversário seria o israelense Tohar Butbul. O mais bizarro é que Abdalarasool não apareceu para reivindicar sua vitória, pois também ele se recusou a enfrentar Butbul, gerando um WO duplo! E algo me diz que a saudita Tahani Alqahtani, da categoria acima de 78 quilos, ainda vai inventar qualquer coisa – doping, Covid, piriri, “o cachorro comeu minha credencial” – para não enfrentar a israelense Raz Hershko na primeira rodada, na noite do dia 29 (horário do Brasil).
Há atletas que se recusam a enfrentar israelenses por convicção? Certamente há, mas o caso de Mollaei também mostra que existe coação e ameaça contra os que gostariam de competir. Difícil condenar um atleta que cede sob tanta pressão, mas, tanto em um caso quanto em outro, a discriminação é evidente e exige resposta. O que a IJF fez com o Irã é uma mudança radical (e correta) no modo de lidar com essas situações. O argelino Nourine e seu técnico já foram suspensos, e pode haver novas punições após os Jogos Olímpicos. Que a ausência de judocas iranianos em Tóquio – e, quem sabe, uma pena semelhante à Argélia e ao Sudão se ficar comprovado que o boicote é política de Estado ou da federação local, e não apenas decisão individual do atleta – sirva de recado a outros países, e que os órgãos esportivos de outras modalidades também tenham a firmeza da IJF.
(Atualizado em 27 de julho) No fim, Mollaei conquistou a medalha de prata, derrotado na final pelo japonês Nagase Takanori, no golden score. Muki ficou longe de compor o pódio com seu amigo: perdeu para o austríaco Shamil Borchashvili nas oitavas-de-final e, por isso, nem chegou a disputar a repescagem.