O “X” de Raven Saunders
Apesar das várias seleções que se ajoelharam nos primeiros dias da competição de futebol, Tóquio esteve longe de ser o festival de protestos político-ideológicos que a militância, parte do jornalismo e uma minoria de atletas gostaria de ver – até porque, como já lembrei aqui, a grande maioria dos competidores é contrária a esse tipo de manifestação no campo de jogo e nas cerimônias. Mas agora o COI está com um abacaxi para descascar: o “X” da norte-americana Raven Saunders, medalhista de prata no arremesso de peso. O gesto, segundo a atleta, é uma demonstração de solidariedade para com os oprimidos, especialmente a população negra, LGBT e os que lidam com questões de saúde mental.
Desde antes dos Jogos, o comitê olímpico norte-americano já havia anunciado que não puniria nenhum atleta em caso de protesto ou manifestação, e a World Athletics não tem nenhum tipo de regulamento que coíba esse tipo de comportamento. Sobra, então, para o próprio COI, que disse estar avaliando o episódio, mas ainda não tomou nenhuma providência, apesar de mesmo a versão mais permissiva das regras vetar protestos no pódio. O comitê norte-americano, inclusive, apresentou um argumento interessante: Saunders pode até ter feito o “X” enquanto estava no pódio, mas em nenhum momento tumultuou os protocolos: o gesto veio apenas no momento das fotografias, não na hora de receber a medalha, nem durante o hino chinês (o ouro foi da chinesa Gong Lijiao). Se o COI vai aceitar o raciocínio, difícil saber; mas não descarto que a entidade o considere uma saída diplomática para não punir Saunders sem ver suas regras desmoralizadas, recorrendo a uma leitura bem restrita do termo “pódio”, que passaria a ser entendido mais como sinônimo de “cerimônia de premiação” que como o tablado propriamente dito.
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E pode ter mais vindo por aí. Saunders disse ao New York Times que desde bem antes dos Jogos um grupo de atletas já vinha planejando os protestos, tendo adotado o “X” como símbolo. Gwen Berry, do arremesso de martelo, não teve chance de se manifestar: ela ficou bem longe do pódio, terminando sua final em 11.º lugar. Mas na manhã desta quarta-feira (horário do Brasil) Noah Lyles disputa a final dos 200 metros rasos; ele tem o segundo melhor tempo do ano entre os finalistas, e fez o terceiro melhor tempo nas semifinais em Tóquio, ou seja, as chances de ele ser medalhista são grandes. Na seletiva norte-americana, em junho, Lyles usou uma luva negra, sem os dedos, e ergueu o punho quando foi apresentado – esse tipo de manifestação estaria, teoricamente, liberado pelo COI, mas o que ele fará caso vá ao pódio é uma incógnita. Ele repetirá o gesto de Saunders, deixando o “X” para a hora da fotografia? Ou testará ainda mais os limites estabelecidos pelo COI, que em três dias ainda não resolveu o que fazer com a medalhista de prata no arremesso de peso?
Continuo achando que o campo de jogo e o pódio não são locais adequados para protestos, mas, se a porteira abrir, eu bem que gostaria de ver alguém protestando contra o genocídio dos uigures cometido pelo governo chinês; ou pedindo a liberdade do Tibete; ou um atleta pró-vida se manifestando em defesa do respeito à vida desde a concepção. Ou só vale o Black Lives Matter e os demais protestos que agradem a militância dita “progressista”?