Ciclismo e natação trazem mais justiça para as competições femininas
Demorou um pouco, mas as federações esportivas internacionais estão começando a se curvar à evidência no caso da participação de atletas transexuais nas competições femininas. Em um espaço de menos de uma semana, a União Ciclística Internacional (UCI) e a Federação Internacional de Natação (Fina) divulgaram suas novas diretrizes para transexuais. No caso de atletas que nasceram mulheres e fizeram a transição para se tornar homens, não há restrição alguma; mas na situação inversa as duas entidades acertaram em um aspecto importante, enquanto em outro deram uma resposta complicada ou simplesmente se omitiram.
Comecemos pelo acerto. O leitor que acompanha o tema faz
algum tempo deve se lembrar que o COI aceitava, em competições femininas,
transgêneros que tivessem uma concentração de testosterona de até 10 nanomoles
por litro (nmol/L) de plasma sanguíneo por ao menos um ano antes da competição.
Em novembro do ano passado, o COI resolveu rever a regra e deixar que cada
federação estipulasse as próprias normas – algumas já o faziam: a World Athletics
e a própria UCI haviam estabelecido um limite de 5 nmol/L.
Acontece que nenhum desses limites era justo com as competidoras nascidas mulheres, pois elas têm uma concentração de testosterona que varia de 0,5 a 2,4 nmol/L. Na melhor das hipóteses, essas atletas ainda estariam competindo contra pessoas que poderiam ter o dobro do seu nível de testosterona, hormônio que tem influência direta sobre aspectos cruciais em vários esportes, como força física e explosão muscular. E qualquer mulher que resolvesse se administrar testosterona para ter níveis semelhantes aos permitidos a atletas transexuais acabaria pega no antidoping e poderia até ser banida do esporte. Por isso considero acertadíssimo que tanto a UCI quanto a Fina tenham definido o limite máximo de 2,5 nmol/L, o que já ajuda a tornar a competição um pouco mais equilibrada. A entidade reguladora do ciclismo ainda determinou que essa dosagem máxima deve ser mantida não por 12, mas por 24 meses.
Em esportes que dependem mais de força física, resistência ou explosão muscular, as regras para transexuais terão de ser muito mais próximas do que está sendo hoje definido pela Fina ou pela UCI
Mas por que digo “um pouco mais equilibrada”, e não simplesmente “equilibrada”? Porque a dosagem de testosterona no sangue não é o único fator envolvido. Como lembrei na minha primeira coluna sobre o tema, ter passado pela puberdade como um menino confere ao atleta uma série de características que não se perdem (ou ao menos não se perdem completamente) quando se começa a suprimir a testosterona – o Eli Vieira fez um excelente apanhado dessas vantagens. O comitê montado pela Fina para estudar o assunto acertou em cheio no diagnóstico ao reconhecer isso:
“O Grupo Científico relatou que o sexo biológico é um
fator chave na determinação de desempenho atlético, com homens prevalecendo
sobre mulheres em esportes (inclusive esportes aquáticos) influenciados
principalmente pela função neuromuscular, cardiovascular e respiratória, e
fatores antropométricos como tamanho do corpo e dos membros. A amplitude da
diferença entre homens e mulheres varia de acordo com o esporte, mas ela surge
universalmente a partir da puberdade. O grupo relata que há diferenças
biológicas ligadas ao sexo nos esportes aquáticos, especialmente entre atletas
de elite, que são resultado dos níveis substancialmente mais altos de
testosterona aos quais os homens são expostos a partir da puberdade. (...)
Altos níveis de testosterona provocam não apenas diferenciação anatômica nos
órgãos reprodutores, mas também tipos/proporções corporais visivelmente
diferentes de acordo com o sexo.
Segundo o Grupo Científico, se a transição de gênero
masculino-para-feminino consistente com os padrões médicos ocorrer depois do
início da puberdade, ela eliminará alguns, mas não todos os efeitos da
testosterona na estrutura corporal, função muscular e outras determinantes de
performance, mas haverá efeitos persistentes que darão a atletas transgênero
‘masculino-para-feminino’ (mulheres transgênero) uma vantagem competitiva
relativa sobre mulheres biológicas. Uma mulher biológica não pode eliminar essa
vantagem por meio de treinamento ou alimentação, nem pode se administrar
testosterona adicional para obter a mesma vantagem, pois a testosterona é uma
substância proibida pelo Código Mundial Antidoping.”
Uma vez admitindo-se a existência dessa vantagem, como lidar
com ela? A UCI ignorou totalmente o assunto – mesmo que o ciclismo seja um dos
esportes em que as características adquiridas com a puberdade masculina façam
diferença no desempenho. Mas não é que a resposta da Fina tenha sido a melhor:
a entidade que regula os esportes aquáticos (natação, saltos ornamentais, nado
artístico e polo aquático) determinou que só estarão elegíveis para competições
femininas as mulheres trans que não tenham passado pela puberdade masculina antes
dos 12 anos ou que tenham atingido no máximo o segundo estágio de puberdade
masculina em uma gradação chamada “Escala de Tanner”, que mede o
desenvolvimento sexual de homens e mulheres – vale o que ocorrer por último.
Essa regulamentação não exige nenhum tipo de cirurgia redefinidora antes dessa
idade; o único requisito é que não tenha havido a puberdade masculina, e para
isso tratamento de bloqueio hormonal já parece ser suficiente.
Acontece que existe toda uma discussão muito importante (e muitas vezes abafada pela mídia e pela militância identitária) a respeito das consequências graves de se fazer transição de gênero ou supressão hormonal em crianças e pré-adolescentes. Desde o trágico desfecho da experiência realizada por John Money com um menino norte-americano nos anos 60, há cada vez mais evidências de que realizar qualquer tipo de terapia de mudança de gênero nessa idade é altamente prejudicial. Tanto é assim que mesmo terapias não cirúrgicas estão sendo proibidas antes de se atingir um certo estágio de desenvolvimento – no caso brasileiro, 16 anos, de acordo com resolução do Conselho Federal de Medicina.
Em parte da imprensa, o novo regulamento da Fina foi
interpretado como sendo, na prática, uma proibição à participação de atletas
transgênero nas provas femininas, pois quem realizou sua transição após a
puberdade (caso, por exemplo, de Lia Thomas) está automaticamente impossibilitado
de competir e, por razões óbvias, ainda não há ninguém que se encaixe nos novos
critérios. Suponhamos, por um momento, que essa tenha sido a intenção: a Fina teria
concluído que não poderia haver competição justa entre nadadoras cis e trans,
mas, temendo a repercussão negativa de uma proibição explícita, adotou essa
regra dos 12 anos, que sabidamente cria uma dificuldade até mesmo do ponto de
vista legal. Mas, se fosse esse o caso, seria muito imprudente da parte da Fina
estabelecer uma norma que, no fim, acaba endossando uma prática no mínimo
irresponsável. Teria sido muito mais prático simplesmente acelerar a
implementação de uma categoria “aberta”, que inclusive está prevista no
documento, permitindo a participação de quem bem entender.
Há esportes e esportes. Naqueles que dependem mais de força física, resistência ou explosão muscular, as regras para transexuais terão de ser muito mais próximas do que está sendo hoje definido pela Fina ou pela UCI, ou até mais drásticas, como no caso de esportes que incluem contato físico entre oponentes: a World Rugby (que governa o rugby union e o sevens) proibiu a participação de transgêneros nas competições femininas no começo de 2021, e a IRL, que regula o rugby league, acaba de fazer a mesma coisa. Em outras modalidades, até acredito que possa haver menos restrições – penso, por exemplo, nos esportes de precisão, como o tiro esportivo, que tem as mesmas especificações nas armas usadas por homens e mulheres; em Tóquio, as medalhistas de ouro e prata na pistola de ar 10 metros tiveram pontuação suficiente na final para bater o segundo colocado da prova masculina; a campeã da carabina de ar 10 metros fez mais pontos que o campeão da mesma prova; na carabina três posições, todo o pódio do feminino fez mais pontos que o medalhista de bronze do masculino. Mas em todos os casos, como venho insistindo, entre a inclusão a qualquer custo e a necessidade de promover uma competição justa para as atletas, é esta última que deve prevalecer.
O esporte brasileiro em alta
De volta ao topo no vôlei de praia. Depois do fiasco
dos Jogos Olímpicos de Tóquio, quando o Brasil passou em branco pela primeira
vez desde que a modalidade entrou no programa olímpico, em 1996, estamos de
novo no pódio. No Mundial de Roma, que terminou domingo passado, Duda e Ana Patrícia
conquistaram a taça; no masculino, Renato e Vitor Felipe foram vice-campeões,
enquanto André e George ficaram com o bronze – ambas as duplas só pararam nos
noruegueses Mol e Sørum, atuais campeões olímpicos.
Tá todo mundo biahaddadizado. A temporada de grama da
tenista Bia Haddad Maia está sendo extraordinária. Ela faturou os torneios WTA
250 de Nottingham (nas chaves de simples e duplas) e Birmingham (na chave de simples),
com direito a vitórias sobre uma top 10 (a grega Maria Sakkari), uma ex-número
2 do mundo (a tcheca Petra Kvitova) e a ex-número 1 Simona Halep, da Romênia.
Ela começou a semana na 29.º posição no ranking da WTA, igualando Maria Esther
Bueno – com a diferença de que Maria Esther chegou a ser a melhor tenista do
mundo, antes de surgir o ranking da WTA. Nesta semana, Bia está jogando o
torneio de Eastbourne, um WTA 500, e já garantiu vaga nas quartas-de-final.
Mas, independentemente do que ocorra neste campeonato, ela está garantida como cabeça-de-chave
em Wimbledon, que começa na segunda-feira que vem.
Brasil na piscina. Em Tóquio, o Brasil pegou dois bronzes (Bruno Fratus nos 50 livre e Fernando Scheffer nos 200 livre) e fez mais quatro finais. Ainda faltam alguns dias para o fim das provas de natação do Mundial de Esportes Aquáticos de Budapeste e já melhoramos esse desempenho: até agora, temos uma prata (Nicholas Santos nos 50 borboleta – aos 42 anos!), um bronze (Guilherme Costa nos 400 livre) e mais cinco finais, incluindo várias no feminino, que não teve ninguém entre os oito melhores nos Jogos Olímpicos; numa delas, a dos 1.500 livre, tivemos duas representantes, Beatriz Dizotti e Viviane Jungblut. Ainda que o Mundial tenha provas que não estão no programa olímpico, o que significa mais chances de pódios e bons resultados, dá para dizer que o Brasil está num bom caminho, especialmente no feminino.