Injustiça em nome da “inclusão”
Uma palavra que anda muito banalizada hoje em dia é
“histórico”. Chamamos de “histórica” muita coisa que está bem longe de ser
capaz de resistir à passagem do tempo, mas em Jogos Olímpicos sempre há algo
que merecerá o termo. A primeira medalha ou o primeiro ouro de um país sempre são
históricos. A apresentação de Nadia Comaneci nas barras em 1976 foi histórica.
As vitórias de Jesse Owens em Berlim são históricas. A resistência de Gabriela
Andersen-Schiess na maratona de Los Angeles-84 foi histórica. O protesto de
Tommie Smith e John Carlos no pódio em 1968 foi histórico. Tóquio também já tem
sua dose de eventos históricos, mas um deles está para ocorrer a partir da
madrugada desta segunda-feira, horário do Brasil; no caso, uma injustiça
histórica.
Em 2012, o neozelandês Gavin Hubbard, que já tinha tido uma
carreira no levantamento de peso, anunciou que era transgênero, passou a se
chamar Laurel Hubbard e a fazer terapia hormonal. Cinco anos depois, Hubbard
voltou a competir, conquistando o vice-campeonato mundial na categoria acima de
90 quilos em 2017 e vencendo a Copa do Mundo realizada em Roma, em 2020.
Hubbard competirá em Tóquio na categoria acima de 87 quilos, e faz parte do
grupo A, que no levantamento de peso designa os atletas com reais chances de vitória.
A presença de Hubbard nos Jogos Olímpicos está sendo louvada mundo afora como
sinal de inclusão, mas na verdade é uma enorme injustiça para com suas
adversárias pela completa desigualdade de condições nas quais se dará a
competição.
As regras do Comitê Olímpico Internacional para atletas transgênero datam de 2015 e afirmam que, para competir nas modalidades femininas, é preciso manter o gênero assumido por ao menos quatro anos; não é mais exigida a cirurgia de redesignação sexual (para acomodar atletas de países onde a prática é proibida ou dificultada), mas é preciso manter níveis de testosterona de até 10 nanomoles por litro por ao menos um ano antes da competição. E aqui começa a brutal diferença de condições entre um atleta transgênero e uma competidora com cromossomos XX.
O COI permite que uma atleta transgênero tenha níveis de testosterona até quatro vezes maiores que o limite superior da média das mulheres! É evidente que isso só pode resultar em uma vantagem injusta para tais atletas
A testosterona é um hormônio que, entre outras características, está associado à força física, influenciando a aquisição de massa muscular e o fortalecimento dos ossos, e só por isso já podemos concluir que ele é essencial para as diferenças de desempenho esportivo entre homens e mulheres. Um homem tem entre 10 e 35 nanomoles por litro de testosterona; uma mulher, entre 0,5 e 2,4 nanomoles por litro. Em outras palavras, o COI permite que um transgênero ainda tenha níveis de testosterona até quatro vezes maiores que o limite superior da média das mulheres! É evidente que isso só pode resultar em uma vantagem injusta para tais atletas. Ou alguém imagina que elas poderão, a partir de agora, começar a se administrar testosterona até este limite máximo sem serem pegas no antidoping, suspensas e banidas do esporte?
Mas as vantagens dos atletas transgênero não se resumem à “permissão” para manter níveis de testosterona incompatíveis com a média feminina. Estudo do Instituto Karolinska, de Estocolmo, mostrou que, mesmo com a terapia hormonal, transgêneros mantêm boa parte das características adquiridas pelo fato de terem crescido como adolescentes do sexo masculino, como massa muscular, estrutura e densidade óssea, e proporção de gordura no corpo. E reportagem recente da revista The Economist trouxe alguns dados evidenciando que um garoto adolescente já tem desempenho esportivo melhor que o das mulheres. O recorde mundial dos 100 metros rasos para adolescentes de até 15 anos é 2,9 décimos de segundo mais baixo que o recorde mundial feminino absoluto. No lançamento de disco, a vantagem dos meninos sobre as mulheres é de 0,88 metro – e o disco que eles lançam é mais pesado que o delas. Se as características adquiridas na puberdade não chegam a ser perdidas, se elas já bastam para um adolescente superar as mulheres esportivamente, e se transgêneros podem continuar exibindo níveis de testosterona muito superiores à média feminina, que justiça há em botar mulheres biológicas e transgêneros para competir juntos?
Sendo a injustiça tão evidente, restam três perguntas. A primeira é mais simples: por que tão poucos reclamam? Porque ninguém quer ser cancelado. Se até um ícone esportivo como Martina Navratilova, uma das maiores tenistas de todos os tempos, teve de pagar seu pedágio ideológico, recuando depois de dizer que não é certo deixar transgêneros competir com mulheres, o que não aconteceria a uma atleta iniciante ou desconhecida? Ainda mais nestes tempos de desmonetização, quem quer correr risco de perder um patrocínio ou uma bolsa de estudos na universidade? É por isso que tão poucas atletas têm a coragem (como teve a belga Anna Vanbellinghem, que competirá na mesma categoria de Hubbard) de vir a público se colocar contra a participação dos transgêneros, ao menos pelas regras atuais. O trabalho fica para organizações como a britânica Fair Play for Women e a neozelandesa Speak Up for Women – ambas se dedicam à defesa dos direitos das mulheres; a questão dos transgêneros no esporte é apenas um dos temas de que elas tratam.
A segunda pergunta: qual seria o melhor resultado nesta segunda-feira? No fim de 2019, escrevendo na American Thinker, Ned Barrett propôs que, para as coisas melhorarem, vão ter de piorar. Se Hubbard conquistar uma medalha (um ouro, quem sabe?), a informação de que há homens biológicos competindo e vencendo no esporte feminino chegará a milhões de pessoas que normalmente não acompanham esportes, mas ao menos nos Jogos Olímpicos prestam atenção, e essas pessoas ajudarão a criar pressão em defesa de parâmetros justos para as competições (Barrett também acha que isso vai colocar “progressistas” em pé de guerra uns contra os outros, mas isso não me interessa). Ainda que isso seja verdade, não sei se gosto da ideia de uma única medalha sequer ser tirada de uma competidora (penso especialmente na pobre da quarta colocada) para ir parar no pescoço de Hubbard.
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Por outro lado, se Hubbard passar em branco e a competição for vencida por mulheres, como deveria ser, é possível que a militância diga que passamos esse tempo todo criando um bicho-papão e que não era para tanto. E, enquanto isso, transgêneros continuarão vencendo competições menores e tirando vagas de atletas em competições maiores. Até que, mais cedo ou mais tarde, a medalha olímpica virá. Então, realmente não sei o que seria melhor.
E a pergunta final: se as regras atuais não servem, como isso se resolve? A World Athletics, antiga Federação Internacional de Atletismo, baixou o limite máximo para 5 nanomoles por litro, mas ainda é um valor bem acima da média das mulheres; não é uma solução satisfatória. A World Rugby proibiu transgêneros no rúgbi feminino, mas porque o contato no esporte é intenso e seus estudos mostraram que há risco enorme para mulheres que sofrem um tackle feito por alguém que tenha crescido como homem. O mínimo dos mínimos seria exigir equivalência total em níveis de testosterona entre mulheres biológicas e transgêneros, e mesmo assim permaneceria o problema das vantagens adquiridas pelos meninos na puberdade. O fato é que não há saída fora do respeito à biologia. Inclusão sem justiça, no fim das contas, é exclusão – no caso, das mulheres que verão cada vez mais difícil seu caminho rumo a um pódio olímpico.