Ginástica artística

Os canceladores derrubam Nory e ganham ouro na falsa demonstração de virtude

Por
Marcio Antonio Campos
24/07/2021 13:27 - Atualizado: 04/10/2023 17:56
Arthur Nory é consolado após apresentação no primeiro dia da ginástica artística em Tóquio. O ginasta não se classificou para nenhuma final.
Arthur Nory é consolado após apresentação no primeiro dia da ginástica artística em Tóquio. O ginasta não se classificou para nenhuma final. | Foto: Gregory Bull/Associated Press/Estadão Conteúdo

O campeão mundial da barra fixa em 2019 e medalhista de bronze no solo no Rio, em 2016, deixa Tóquio e volta para casa sem medalha. O ginasta Arthur Nory não teve o desempenho esperado, não se classificou para nenhuma final, e o Brasil também não conseguiu passar para a final por equipes. Falando ao site Olimpíada Todo Dia logo após suas apresentações, Nory negou que o caminhão de ofensas sofridas nos últimos dias tivesse tido algum efeito. “Acho que não foi por isso”, ele disse. E, se formos olhar bem, Nory não foi o único a render menos que o imaginado. O megamedalhista japonês Uchimura Kohei e o “holandês voador” Epke Zonderland tiveram notas ainda mais baixas que a do brasileiro. Mas, dias antes, quando os ataques começaram e Nory foi ao Twitter reclamar, dava para perceber que não estava tudo 100% bem, não.

Para resumir bastante o assunto, em 2015 Nory publicou um vídeo em que ele e outros ginastas zombavam de um colega da seleção brasileira, Ângelo Assumpção, com ofensas de cunho racista. Foi grotesco, foi infeliz, foi cruel. Os ginastas tomaram uma suspensão de 30 dias. O caso foi parar no STJD, que arquivou o processo. Assumpção não quis ir à Justiça, e não houve punição nem por racismo, nem por injúria racial, tanto para Nory quanto para os outros ginastas do vídeo; uma ONG chegou a acionar o Judiciário em nome de Assumpção, mas desistiu de seguir adiante com o processo. O caso ressurgiu ano passado, quando o público soube que, em 2019, Assumpção havia sido demitido do Clube Pinheiros, em São Paulo – a história toda do ginasta está aqui. A demissão não tinha relação com Nory, mas o campeão mundial atraiu a fúria da militância devido ao episódio de 2015.

Definir toda a vida passada, presente e futura de uma pessoa por um único episódio é mais que injusto, é irracional. Negar a essa pessoa a oportunidade de admitir erros e emendar-se é mais que injusto, é cruel

Nory não era nenhum molequinho imaturo, tinha 21 anos quando gravou e publicou o vídeo. E aquilo não é “brincadeirinha” nem aqui, nem em nenhum outro lugar. Mas Nory reconheceu o erro. Disse ter procurado Assumpção pessoalmente para se desculpar – até onde se sabe, o ex-amigo e ex-colega de clube e seleção não chegou a perdoar Nory. E, publicamente, Nory também pediu desculpas. Uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes, isso numa pesquisa rápida. Isso, no entanto, não parece suficiente para a turba, que conseguiu juntar dois hábitos deploráveis em um episódio só. O primeiro é o da já conhecida cultura do cancelamento, em que o linchamento virtual não termina enquanto a vida do alvo não for completamente inviabilizada – e, quando se trata de um atleta olímpico, tirá-lo do sério para prejudicar seu desempenho já vale como uma medalha para a militância.

O segundo hábito é a mania absurda de julgar a vida toda de um indivíduo por um único ato e, ainda por cima, negar completamente a possibilidade de arrependimento e redenção, um fenômeno importado dos Estados Unidos e cuja origem o Carlos Ramalhete já descreveu anos atrás. Ainda que Nory resolva se açoitar no meio da praça, ainda que ele consiga outro clube para Assumpção treinar, nada disso o reabilitará para a turba canceladora, para a qual só interessa a narrativa, não os indivíduos – aliás, para as Valescas Popozudas da vida, o próprio Assumpção é mero detalhe, uma escada por meio da qual os canceladores podem arrotar virtude.

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Definir toda a vida passada, presente e futura de uma pessoa
por um único episódio é mais que injusto, é irracional. Negar a essa pessoa a
oportunidade de admitir erros e emendar-se é mais que injusto, é cruel. Como
afirmou Ramalhete, “quem faz o mal hoje pode deixar de fazê-lo amanhã. Quem o
fez anos atrás, e de lá para cá comportou-se bem, merece nosso apoio, não nossa
condenação. Sem redenção não é possível haver civilização; tudo tende a um
dualismo que ignora as profundidades do cipoal que é a natureza humana e que
tudo reduz a um mínimo denominador comum que só pode levar a injustiças graves
e duradouras”.

Sendo um pouco engenheiro de obra pronta, acho que Nory arriscou ao seguir publicando em mídias sociais às vésperas dos Jogos. Ele sabia que o caso do vídeo com ofensas racistas seguia tendo repercussão, sabe que existe cultura do cancelamento, seria impossível que tudo isso não se voltasse contra ele nesta hora. Era o momento de desligar tudo e se concentrar na ginástica. Não desligou, e o peso do ódio lançado contra ele não deixou que Nory voasse como podia em Tóquio.

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Marcio Antonio Campos é editor de Opinião da Gazeta do Povo. Coautor de "Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé", escreve no blog Tubo de Ensaio, na Gazeta do Povo; voluntário em duas edições dos ...

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