Política e esporte

Os Jogos de Inverno de Pequim deveriam ser boicotados?

Por
Marcio Antonio Campos
30/08/2021 21:39 - Atualizado: 04/10/2023 17:33
Cheung Kim Hung, CEO e diretor executivo da empresa controladora do jornal Apple Daily, é levado à prisão em Hong Kong, em 19 de junho de 2021: governo de Pequim persegue manifestantes e imprensa pró-democracia no território.
Cheung Kim Hung, CEO e diretor executivo da empresa controladora do jornal Apple Daily, é levado à prisão em Hong Kong, em 19 de junho de 2021: governo de Pequim persegue manifestantes e imprensa pró-democracia no território. | Foto: Jerome Favre/Agência EFE

A era dos grandes boicotes aos Jogos Olímpicos já está nos livros de História. Houve o boicote das nações africanas em Montreal-1976, em protesto contra a participação da Nova Zelândia, cujo time de rúgbi (que nem esporte olímpico era) havia feito uma série de jogos na África do Sul, onde então vigorava o apartheid. Houve o boicote liderado pelos Estados Unidos em Moscou-1980, em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão. E houve o boicote da maioria dos países socialistas em Los Angeles-1984, em resposta ao que ocorrera quatro anos antes. Depois disso, ninguém mais falou em protestos massivos de nações nos Jogos Olímpicos. Nem em 2008, quando Pequim sediou a competição e o mundo inteiro sabia que o histórico do regime comunista chinês em termos de direitos humanos era uma desgraça. Até circulou por aí um PowerPoint transformado em vídeo e em imagem com uma versão bem peculiar de como a logomarca de Pequim-2008 foi criada, mas tudo ficou basicamente em protestos isolados mesmo.

Protesto contra as violações de direitos humanos cometidas pela China, antes dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008.
Protesto contra as violações de direitos humanos cometidas pela China, antes dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008.

Mas a coisa piorou nesses 13 anos, a ponto de voltarem a falar em boicote das potências ocidentais aos próximos Jogos Olímpicos de Inverno, que ocorrerão em Pequim no início do ano que vem. Convenhamos, razões não faltam. E podemos até deixar de lado toda a fumaça sobre o papel do governo chinês nos primeiros momentos da pandemia, escondendo dados, perseguindo os primeiros médicos a denunciarem que havia algo estranho em Wuhan, ou passando informação errada à OMS. Ainda que nunca tivesse havido Covid-19, há o genocídio promovido pela ditadura chinesa contra os muçulmanos uigures em Xinjiang – e duvido que algum veículo de imprensa brasileiro tenha falado tanto disso quanto a Gazeta do Povo – e a repressão brutal em Hong Kong, em violação total do que tinha sido acertado com o Reino Unido quando da devolução do território em 1997. Se os países ocidentais, especialmente o time da Grã-Bretanha, quisessem ficar de fora (e o chanceler britânico já levantou essa possibilidade), estariam cobertos de razão, bem como os países muçulmanos, embora nenhum deles seja relevante em esportes de inverno.

A questão é: funciona? Serve para chamar a atenção, mas as autoridades chinesas não mudariam um milímetro na sua política. O melhor momento para se fazer algo era 2015, quando o Comitê Olímpico Internacional se reuniu para votar na sede de 2022 e escolheu Pequim em vez de Almaty, no Cazaquistão. Depois disso, até houve pedidos para o COI mudar a sede, mas deram em nada. Mesmo políticos do Partido Republicano, nos EUA, não endossam o boicote completo, no sentido de não enviar delegações – Donald Trump, quando ainda era presidente, disse que seria injusto com os atletas; outros viram o copo meio cheio, como Ted Cruz, para quem o negócio é ir lá, competir e vencer os chineses na casa deles.

Mas também não dá para fingir que não há nada ocorrendo,
certo? A ideia que está ganhando força é a do “boicote econômico/diplomático”:
mandar atletas e mais ninguém. O boicote oficial seria feito pelas autoridades,
e os governos ocidentais estimulariam os torcedores a não ir à China. Tem lá sua
lógica, embora seja bem possível que, em fevereiro de 2022, a pandemia ainda
não esteja sob controle e, no fim das contas, os chineses até agradeçam por não
verem Pequim cheia de estrangeiros circulando pela cidade.

O problema é que alguns defensores do boicote diplomático não souberam esconder sua hipocrisia. Vejam, por exemplo, esta coluna de Nicholas Kristof, do New York Times, publicada em abril, em que ele defende abertamente a decisão da MLB de tirar seu All-Star Game de Atlanta, mas diz que não é o caso de não mandar atletas a Pequim. Então ficamos assim: um país comanda um esquema de genocídio, limpeza étnica e lavagem cerebral em “campos de reeducação”, e veja bem, não dá pra ser tão rígido assim, tem outros meios de protestar... mas não daria para usar esses “outros meios” também no caso da lei da Geórgia para aumentar a segurança nas eleições? Não, nem pensar, deusmelivreeguarde, o negócio é remover um grande evento esportivo de lá, e quem sabe salgar o solo pra não crescer mais um único campo de beisebol em todo o estado! Dá para ver o que é mais grave na escala de valores do colunista...

Qual é a minha sugestão? Bom, tem aquela flexibilização da Regra 50, não tem? Eu tenho lá minhas reservas, que já manifestei aqui, mas, já que o COI resolveu dar mais liberdade, que ela seja usada pra algo bom: que os atletas aproveitem toda chance possível para denunciar o genocídio dos uigures e pedir liberdade e democracia para Hong Kong. Aí veremos se o papo desse pessoal do “não tem como separar política e esporte” é de verdade mesmo, ou se só vale para as causas queridinhas dos “progressistas”...

Funcionário do mês

Li no insidethegames que o comitê organizador dos Jogos Paralímpicos de Tóquio teve de pedir desculpas à equipe paralímpica de um certo país que montou um esquema estatal de doping anos atrás. Isso porque um dos seus atletas venceu uma competição, mas, na hora do pódio, em vez de tocarem Tchaikovsky, tocaram o hino do Comitê Paralímpico Internacional. Em outras palavras, o sujeito tocou o hino certo, já que os atletas daquele país deveriam estar competindo sob a bandeira e o hino do CPI, e não com toda essa personalização. Sei lá se foi uma distração ou se foi um protesto solitário, mas pouco interessa; por mim, podem dar uma medalha, um Oscar, um Nobel pra quem estava pilotando o aparelho de som.

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Marcio Antonio Campos é editor de Opinião da Gazeta do Povo. Coautor de "Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé", escreve no blog Tubo de Ensaio, na Gazeta do Povo; voluntário em duas edições dos ...

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