“Comitê Olímpico Russo” em Tóquio é piada de mau gosto
No Rio, em 2016, dois atiradores kuwaitianos conquistaram
medalhas: Fehaid Al-Deehani foi ouro na fossa dupla e Abdullah Al-Rashidi foi
bronze no skeet. Mas nenhum deles viu a bandeira de seu país hasteada, e
Al-Deehani não ouviu o hino de seu país: assim como outros kuwaitianos no Rio,
eles competiram como Atletas Olímpicos Independentes, pois o Kuwait tinha sido
suspenso pelo Comitê Olímpico Internacional em 2015 devido a interferências
governamentais na gestão esportiva local.
Ir aos Jogos Olímpicos como independentes é a solução do COI
para atletas de países suspensos por motivos ligados ao esporte ou política
internacional, como os iugoslavos em 1992, quando sua nação sofria sanções da
ONU durante a guerra nos Bálcãs. A participação como independentes deveria ser também
o destino dos atletas russos em Tóquio, após a suspensão do país pela Agência
Mundial Antidoping (Wada), em 2019, já que as autoridades russas continuaram
manipulando dados relativos ao enorme esquema de doping montado pelo país desde
o início da última década. Mas as entidades esportivas internacionais, tigrões
com nações como o Kuwait, viraram tchutchucas quando se trata de punir a
Rússia.
A piada começou nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018, em
PyeongChang, quando os russos já estavam sob o efeito de uma outra suspensão
devido ao mesmo escândalo de doping. Atletas “limpos” puderam participar e
conquistaram 17 medalhas, duas de ouro – na patinação artística, com Alina
Zagitova, e no hóquei masculino. No pódio, os medalhistas russos viram ser
hasteada a bandeira olímpica, e Zagitova e os jogadores de hóquei ouviram o
Hino Olímpico, como se fossem atletas independentes. Exceto por um detalhe: sua
delegação tinha nome próprio, “Atletas Olímpicos da Rússia”; seus uniformes
traziam as cores do país; e eles participaram inclusive em esportes coletivos,
o que os independentes não podem fazer.
Em Tóquio a vergonha olímpica será ainda maior: os russos
mais uma vez não serão Atletas Olímpicos Independentes, mas competirão com o
nome “Comitê Olímpico Russo”. Os uniformes terão novamente as cores do país. E,
agora, haverá até bandeira própria, com a logomarca do comitê, e uma peça de
Tchaikovsky escolhida para ser o “hino”. Em resumo, se tem Rússia no nome, as
cores da Rússia no uniforme, música de russo e bandeira com o símbolo do comitê
olímpico russo no pódio, os narradores oficiais podem até não usar o termo
“Federação Russa”, mas é a Rússia competindo. É ingenuidade demais esperar do
torcedor comum que faça a distinção – e o torcedor russo certamente não estará
nem aí.
Então, ficamos assim: o ditador do Ondeéquistão resolve
nomear o presidente da confederação local de bolinha de gude, o COI grita
“inaceitável interferência política!” e proíbe qualquer menção ao país e a seus
símbolos nacionais nos Jogos Olímpicos, fazendo seus atletas competirem como
independentes, usando um uniforme de uma cor neutra qualquer. A Rússia monta um
megaesquema estatal de doping, fraudando o jogo limpo, a própria essência do
esporte e do espírito olímpico, e ganha delegação própria, com nome próprio,
bandeira própria, sigla própria, uniforme com cores do país, música própria.
Os russos queriam como “hino” uma canção folclórica da era
soviética chamada Katyusha.
A Corte Arbitral do Esporte achou que era uma referência muito direta ao país (claro,
porque nem o nome “Comitê Olímpico da Rússia”, nem as cores vermelha, azul e
branca são referências assim tão diretas) e vetou. A segunda escolha foi um
trecho do Concerto
para Piano n.º 1. Talvez devessem ter optado pela Abertura
1812 – além de simbolizar a vitória russa sobre a França napoleônica,
também passaria a representar o triunfo russo sobre o bom senso e a decência no
esporte.
Marcio Antonio Campos é editor de Opinião da Gazeta do Povo. Fã inveterado dos Jogos Olímpicos, participou como voluntário em duas edições (Turim-2006 e Rio-2016).