Como um dentista pretende inverter a lógica do Paranaense pelo streaming
“Se eu te falar que sou dentista de formação, você vai achar o quê?”, brinca Guilherme Figueiredo, fundador e diretor-gerente da NSports, plataforma de streaming esportivo que assumiu as transmissões do Campeonato Paranaense em 2022.
“Não só fui dentista como atuei por dez anos na área”, confirma o executivo de 44 anos, que largou sua profissão original em 2011 e hoje tem 21 canais sob o guarda-chuva da NSports, incluindo Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Liga Nacional de Futsal (LNF), Superliga de Vôlei, Brasileirão Série C e Campeonato Catarinense.
Confira a tabela do Campeonato Paranaense
Em entrevista ao UmDois Esportes, Figueiredo detalhou como mudou completamente de área, passando pela criação de uma agência de viagens para torcedores até o cargo de gerente de desenvolvimento de negócios da Globo.
Ele também revelou detalhes das negociações para fechar com o Paranaense, cujo contrato vai até 2023, e falou da expectativa em transformar o Estadual em um produto mais moderno e lucrativo, invertendo lógica de depreciação dos últimos anos.
Você trabalhou na Globo. Como veio a ideia de criar seu próprio negócio de streaming?
Na Globo eu trabalhava em um projeto de telões de estádio, chamado Estádio TV. Eu era o líder do projeto que montou toda estruturação de conteúdo para vários estádios, inclusive a Arena da Baixada. A gente operou por bastante tempo os telões deles, 2014, 2015, fizemos isso com Corinthians, Palmeiras, Maracanã, Mineirão, Grêmio, Inter, vários lugares do Brasil. E aí basicamente o que a gente fazia era uma transmissão ao vivo para o telão. Pegava o sinal da Globo, fazia uma transmissão mais simples e jogava esse sinal pós-produzido para os telões. O projeto acabou sendo descontinuado, então eu saio no meio de 2017. Fui demitido e saio com a ideia de fazer algo parecido com isso para streaming focado em esportes olímpicos. O conceito original da NSports era 100% voltado para modalidades olímpicas, dar visibilidade, democratizar as transmissões esportivas de um modo geral. Obviamente, a partir do momento em que você monta uma plataforma de streaming esportivo no Brasil, não tem como não ir para o futebol. E a gente acabou indo primeiro para o Catarinense, agora para o Paranaense – transmitimos também a Série C do Brasileirão e somos muito fortes hoje, principalmente nos esportes olímpicos. Temos o Canal Olímpico do Brasil, do COB, os canais de oito confederações no total, transmitimos a Superliga de Vôlei, a Liga Nacional de Futsal, a Liga de Basquete Feminino. Enfim, das grandes ligas só não transmitimos a NBB. Então, fomos para o futebol sem perder a identidade dos olímpicos e o conceito de dar visibilidade àqueles eventos de menor cobertura.
Qual é o papel da Netshoes na NSports?
Hoje, nenhum. Eles foram o primeiro patrocinador. O projeto, que nasceu como um powerpoint, literalmente, só seria tirado do papel se tivéssemos um patrocinador que topasse colocar dinheiro por pelo menos três anos. E aí a Netshoes foi extremamente importante. Conseguimos colocar no ar em janeiro de 2018 por conta do patrocínio deles. Em 2019, um fundo de investimento entrou e conseguimos até entrar no futebol, ampliar a conta de direitos. E em 2020, no começo da pandemia a Netshoes precisou sair, cortando vários contratos, um deles o nosso. Durante a pandemia acabamos crescendo porque aproveitamos o período sem jogos para fazer contato com diversas entidades. Quando os campeonatos voltaram sem público eles precisavam transmitir de alguma forma e a gente já tinha feito contato com várias entidades. Foi o momento de trazer vários canais pra dentro, inclusive o Canal Olímpico do Brasil, que ganhamos a concorrência do COB para fazer. Mas a Netshoes foi super importante pra gente. Nunca foram donos do canal, mas foi um patrocinador importante. Tomara que a gente volte a fazer negócios juntos.
A letra N no nome NSports era de Netshoes?
Não, era de várias, "n" modalidades. Naturalmente tem uma brincadeirinha ali, o logo era até mais parecido. Era TV NSports by Netshoes, a gente tirou o TV e o Netshoes. Nem nos apresentamos mais como uma plataforma de streaming, mas como uma sportech de transformação digital das entidades através da produção de conteúdo. Hoje, o ao vivo é o que aparece mais no fim das contas, mas tem muito conteúdo que fazemos nas redes sociais, minidocumentários, de contar histórias para conteúdo patrocinado.
O streaming está em que patamar na cultura esportiva do brasileiro hoje?
Diria que já estamos bem adiantados. Oito, quase nove, na entrada do streaming do futebol. O Cariocão faz isso, o Paulistão faz, o Catarinense faz há bastante tempo, o Paranaense entrou forte. A Eleven Sports, antes MyCujoo, já fazia a transmissão de vários campeonatos menores. Acho que não tem muito como fugir do streaming. O que é diferente no futebol, a gente que trabalha com os esportes olímpicos percebe. Nos olímpicos, transmitir 100% da temporada é um upgrade enorme. Então a gente é uma love brand, os atletas, as marcas adoram a gente porque demos uma visibilidade que não existia. No futebol há uma sensação um pouquinho diferente. Como esses campeonatos passavam na televisão, normalmente no Premiere ou em alguma TV aberta, e precisaram ir para o streaming por um certo desinteresse ou diminuição de pagamento de valores pelas TVs, às vezes dá uma sensação de que foi um downgrade. Na verdade, o streaming é, o Youtube nem se fala, mas qualquer outra plataforma OTT hoje, depois das lives dos sertanejos, ninguém mais acha estranho assistir live pela internet.
Estamos muito longe dos streamings igualarem as receitas que as TVs pagavam aos clubes?
Isso vai depender muito da participação da torcida. No final das contas é um modelo muito baseado em pay-per-view (PPV). Tem um pouco de publicidade, sim, mas quando a Globo vende seu pacote de publicidade, ela vende muito mais que o futebol. O futebol é o carro-chefe, mas tem lá entrega no Fantástico, no Jornal Nacional, um monte de entregas durante a programação. Então, quando vamos para uma plataforma de streaming qualquer, é bem diferente. Não dá para fazer uma entrega tão robusta como em uma TV aberta. Então, buscamos conteúdos patrocinados, distribuição nas redes sociais, acordos diferentes de distribuição com públicos diferentes – como é o caso da Twitch e o MuuhPro passando o jogo do Coritiba. Esse cenário está se desenhando. Quando vemos o Gaules transmitindo NBA, o Estagiário da Fúria transmitindo Liga Nacional de Futsal em parceria com a gente, o Casimiro transmitindo Carioca com a Sportsview, você percebe que são varias tentativas para ver onde isso vai se monetizar da melhor forma. Acho que tem uma fase de aprendizado, realmente, tanto das marcas, como das entidades, como das plataformas. Como também do público de entender que ele precisa colaborar pagando o PPV para que esse bolo cresça. O Carioca do ano passado mostrou que é possível, sim. 50% da receita de PPV veio do streaming e os restante da TV a cabo – a gente imaginou que fosse bem menor e ela aconteceu de forma boa. Então, tem que ver o quanto o público vai efetivamente se engajar com as transmissões.
No Paranaense, o repasse é feito com base no número de assinaturas do torcedor de cada clube?
Isso. Basicamente, temos três acordos. Um com a Federação Paranaense de Futebol (FPF) e que envolveu os dez clubes menos Coritiba e Athletico. É a FutebolParanaense.tv. E a gente fez um segundo acordo separado com Coritiba e Athletico porque eles queriam colocar os jogos nas suas próprias plataformas. Como eles teriam só metade do campeonato pela Lei do Mandante, fizemos acordo para que pudéssemos colocar na nossa plataforma os jogos deles como mandantes e eles pudessem colocar seus jogos como visitantes nas suas próprias plataformas. E assim foi. O grande mérito de como a gente conduziu com os clubes foi ter conseguido atender os interesses de todos. Ter 100% dos jogos transmitidos, conseguir fazer distribuição internacional, streaming for bets do campeonato e atender a vontade de Athletico e Coritiba de passar os jogos. Não adiantava ter um produto mambembe, com metade do campeonato. Para ter um produto bom eles teriam que ter a certeza que os jogos como visitante eles poderiam passar também. Foi essa engenharia que fizemos.
Foi difícil negociar?
Não foi simples com nenhum deles. O Petraglia participou das reuniões também, mas a gente entende a vontade dos clubes. Não foi simples nem com os dez nem com os outros dois separadamente. Mas fizemos questão de mostrar que era um processo ganha-ganha pra todos. E eles entenderam. Uma plataforma de streaming com 100% dos jogos do paranaense é um produto, outra só do Coritiba com 100% dos jogos é outro, e do Athletico também. Se a gente fosse picotar isso ficaria com três não-produtos e aí o público não vem, começa a ir pra pirataria, vai achar onde vai assistir o jogo. Quando todos entenderam que negociar coletivamente fortaleceria o produto de todos, aí funcionou muito bem. E temos trocas semanais. A ideia do Coritiba de passar o Atletiba com o Muuh partiu do clube, que validou conosco, com Athletico e a FPF. Claramente, quando está todo mundo imbuído de fazer acontecer, as coisas acontecem.
Pensam fazer algo parecido com o Athletico?
Possivelmente sim, provavelmente partindo deles. Nesses casos específicos temos feito alguns acordos. Pode partir dos dois lados, é realmente uma relação super aberta. Fazemos questão sempre de falar que não somos compradores de direitos. O que a gente faz é investir no produto, bancar a produção dos jogos, garantir um mínimo de valor, só que estamos montando um projeto conjunto. Se a gente conseguir ter sucesso comercial, de publicidade e PPR todo mundo ganha. Se não tiver, o ganho é menor porque é limitado a isso.
O Paranaense está dentro da expectativa de assinaturas? Pode detalhar algum número?
Está sim. A gente sempre espera mais, tem possibilidade de crescimento, sem dúvida. Todo processo foi em cima da hora, de divulgação e fechamento. Como há mais um ano de contrato, temos possibilidade de ganhar no tempo. O investimento no projeto estava dentro do nosso orçamento, tínhamos mais um estadual para trazer num processo de construção de produto e o Paranaense sempre foi o nosso preferido, até por estar perto de Santa Catarina. De números eu não poderia falar, mas posso dizer que está no limite da expectativa, mas está dentro sim. É algo que esperamos de um processo de construção. A queda de receita no modelo, saindo da TV aberta pra streaming, sempre é um processo doloroso no primeiro momento, mas dentro do tempo que tivemos pra trabalhar e como tudo está se desenvolvendo está dentro da expectativa sim.
A NSports tentou fechar com o Paranaense em outra oportunidade, certo?
Tentamos quando a DAZN comprou [em 2020]. E no ano passado tentamos de novo, fecharam com a Massa e não conseguimos fazer um pacote que fazia sentido. Transmitimos somente os jogos do Coritiba pelo acordo que temos separadamente com o clube.
É possível que a TV aberta conviva com esse modelo de streaming?
Dá pra conviver e, em muitos casos, algo que estamos conversando com a FPF, a gente ser o player nessa negociação também. A gente faz isso com a Liga Futsal e a Superliga. A Liga Futsal transmitimos na TV Cultura no ano passado. Era o NSports que fazia toda produção do sinal pra TV aberta. Como já vamos ter o investimento de produção, faz todo sentido participar do acordo comercial e ajudar nessa produção. Porque a queda foi tão grande do investimento das TVs no esporte em geral que muitos não pagam nem a produção dos eventos. Nem falando de direitos, só o custo para por no ar.
O Paranaense tem perdido valor nos últimos anos… Como vocês podem ajudar a mudar o rumo?
É inegável que teve sim uma diminuição, não diria nem apenas do Paranaense, mas de todos os estaduais, por uma série de questões como calendário e tal. Isso diminuiu o interesse dos clubes, alguns jogando com categorias de base. Isso é uma cascata que vai diminuindo o interesse de todos os players, desde torcedores, clubes, TVs. Nesse cenário, a gente vê o streaming como uma baita oportunidade para manter e até para buscar um novo público para esses campeonatos. Nesse ponto entendemos que a NSports tem potencial para colaborar muito nos estaduais e não deixar que tenham eventos de blackout, eventos que não sejam transmitidos. Seria um downgrade muito grande. Não adianta colocar no ar sem ter um plano de receita para isso. Colocar um streaming no ar é muito simples, mas se você faz de forma muito descentralizada e tentando cada um por si achar uma solução de monetização, o que acontece no final é que perde-se valor. Quando centralizamos isso você ganha valor e passa a ter possibilidade de monetização muito maior do que vender separadamente.
O Paranaense é uma aposta de longo prazo? Como encontrar um novo público para o campeonato?
Sem dúvida. Esse público jovem a gente pode buscar do streaming, inclusive com parcerias de distribuição como essa do Muuh. Não queremos ser só uma plataforma de streaming, não é esse nosso trabalho, é uma construção de produto em conjunto com as entidades. Essa distribuição em TV aberta, alinhada com uma estratégia de venda de PPV, pode fazer uma diferença inclusive nas vendas. Esse ano no Catarinense estamos transmitindo 100% pela primeira vez. Nos anos anteriores a NSC não permitia. Nesse ano sentamos com eles e fizemos um acordo comercial. Faz sentido para a NSC, como detentora parcial, fazer o produto como um todo melhorar. Isso que estamos tentando fomentar a todo momento. Infelizmente não conseguimos com a Rede Massa nesse ano porque desistiram de última hora, mas certamente teríamos sentado com eles pensando em um modelo conjunto.
Hoje o Catarinense está muito à frente do Paranaense?
Não está muito à frente, não. Quando comparamos as vendas é quase pau a pau, os campeonato são muito parecidos. Pela importância e momento, os clubes fazem do Paranaense um produto um pouco maior, mas eles se equiparam nas vendas.
Como você foi parar no mundo do futebol?
Eu trabalho com futebol desde 2008, quando montei uma empresa de turismo esportivo, a Futebol Tour. Ficamos de 2008 a 2014 fazendo viagens para os clubes, chegamos a ser a agência oficial de Palmeiras, Santos, Flamengo, Fluminense, Botafogo, Vasco. Sempre fui apaixonado por futebol e queria empreender. Montei a agência quase de brincadeira. Em 2010 começou ficar mais séria e em 2011 me dedico totalmente à empresa. Depois fui para a Globo e acabei me desenvolvendo como executivo de esporte, mas originalmente sou dentista.