Os feitos do presente e as glórias do passado
Mauro Singer com o neto e o filho na Arena da Baixada.
Mauro Singer

Athletico e os retalhos de um sofrimento

Por
Mauro Singer
25/03/2024 15:30 - Atualizado: 25/03/2024 15:29

Sem dúvida alguma, seria atleticano. Família e amigos próximos não me deixariam outra opção. Mas meu nível avançado de fanatismo, com direito a angústia, mau humor, exagero e estômago embolado, devo especialmente a Rinoldo Albano Cunha.

Ao locutor dos gols quilométricos, titular do microfone da Rádio Marumbi, àquele que passava um bálsamo em nossas almas feridas mentindo docemente que fomos "novamente roubados de maneira vergonhosa em mais um Atletiba", minha gratidão eterna pelas tardes sufocantes e solitárias imaginando as cenas de uma vitória heróica.

É injusto discriminar a nova geração de torcedores do Athletico, a tal geração Arena. Nasceram depois, simples assim. Mas era tudo deliciosamente feio.

Na minha época, a Baixada tinha duas entradas. A dos fundos, na Rua Madre Maria do Anjos, com muro fácil, fácil de pular. Uma sábia medida divina para a purificação e solidificação do caráter do atleticano sem remuneração para o evento.

E também a principal, na Rua Buenos Aires, onde atualmente encontra-se o famoso Boulevard, à época entrada do ginásio de esportes, local de um famoso, politicamente incorreto, delicioso e mágico baile de Carnaval. Como em Las Vegas, a capital americana dos jogos de azar, o que lá acontecia, por lá mesmo ficava.

O grosso da massa entrava por ali e logo de cara tomava um tapa na cara da mãe realidade. Tomasse o torcedor o caminho da esquerda, rumo à Curva da Laranja, logo ao final do corredor, estampado à sua frente, avistava um varal de roupas de algum funcionário residente no pequeno aposento construído de maneira precária.

Lembro bem que Tip Top de criança puxando para o vermelho era sinal de bom agouro e  possível sucesso. Roupas, mesmo infantis, de cor verde, eram liberadas pelo juízo popular para pronta incineração. Essa tarefa normalmente era destinada aos bem mais jovens para fortalecimento da alma e causa atleticana.

Dentro do estádio, quase exclusivamente masculino (erro crasso), mulheres não eram exatamente bem recebidas. Uma ou outra heroína recebia numeroso coro exaltando seus atributos. Grosseria bastante comum naquele tempo.

Era permitida a competição de tiro ao alvo com laranja, por isso Curva da Laranja, cujo alvo principal eram as costas ou, para os mais graduados e certeiros, a cabeça do bandeirinha. A distância do alambrado para o gramado era bem menor do que hoje, menos de um metro até o alvo móvel.

Como guarda-chuvas e varas de bambu (para as bandeiras) eram permitidos, pelo menos com impedimentos mal marcados nunca fomos roubados em casa. Lembro bem de um lance duvidoso em que o bandeira não levantou seu instrumento de trabalho e foi devidamente açoitado pelos torcedores. Ele se virou para a arquibancada e falou: "Deixei seguir porque vi que o lance não daria em nada". Explicação aceita, segue o jogo.

Meninos e meninas de hoje – sarados, limpinhos, fazendo selfie de biquinho – não existiam.

Mesmo os mais endinheirados, por mais caprichosos que fossem, não resistiam à observação minuciosa. Se a torcida do Athletico era a nata do futebol, éramos a nata azeda, como dizia Julião da Caveira. Em sua maioria, éramos bêbados mal vestidos e agressivos. O fator de ignorância necessário para a evolução da espécie.

Aos sábados, a praça em frente à Baixada abrigava um culto de curas milagrosas comandado um pastor muito famoso por seu programa de rádio. A celebração era exatamente no horário do jogo.

Então, na saída, acontecia a mistura dos palavrões dos torcedores com as manobras de cura do referido líder espiritual. Ainda bem que os celulares e a internet 5G só seriam inventada muitos anos depois, pois seria o estopim de uma guerra santa.

Mas torcedores e fiéis se uniam na praça de maneira harmônica. Belos casos de amor surgiram dessa simbiose. Meninas da celebração tinham muita facilidade em se apaixonar por nossos heróis suados e sem camisa que voltavam do jogo. Era a natureza multiplicando suas diferentes virtudes.

O Athletico de hoje, vitorioso, rico e conhecido graças às mãos e inteligência do gênio malvado Mario Celso Petraglia, só existe porque lá atrás foi feito o serviço sujo.

Aos irmãos que tombaram em batalha e que não puderam aproveitar esse momento único que vivemos, minhas saudades e meus respeitos.

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