Sicupira ganhou biografia em 2020; leia trecho do livro e relembre passagens do Craque da Camisa 8
Texto originalmente publicado em setembro de 2020, quando do lançamento da biografia de Barcímio Sicupira, "Vida e gols de um craque chamado Barcímio" .
Barcímio Sicupira Júnior morreu neste domingo, aos 77 anos, em Curitiba.
Barcímio Sicupira Júnior carrega marca rara no futebol. Em 14 anos de carreira, estreou marcando gol em todos os cinco clubes que defendeu. Foi assim no extinto Ferroviário-PR, nos Botafogos – do Rio de Janeiro e de Ribeirão Preto –, no Athletico, onde se tornou lenda, e também no Corinthians, camisa que defendeu por quatro e intensos meses em 1972.
Aos 76 anos, o Craque da 8 debuta novamente com outro golaço. Da tabelinha marota com o jornalista Sandro Moser nasceu a biografia "Sicupira - Vida e Gols de um Craque Chamado Barcímio" (Editora Banquinho). O livro, que relata, detalha e contextualiza a trajetória do maior artilheiro do Furacão dentro e fora de campo, tem lançamento marcado para 3 de outubro. O prefácio é de Carneiro Neto, colunista da Gazeta do Povo, enquanto o posfácio foi assinado por Augusto Mafuz, colunista da Tribuna do Paraná.
Mais do que biografar Sicupira, Moser mergulhou em períodos distintos do futebol e da sociedade brasileira. Explica a origem familiar do craque, descendente de imigrantes, passa pela infância e adolescência de "Barciminho, o terrível" nas nas ruas do bairro Alto da XV, em Curitiba, e ainda disseca os movimentos políticos e culturais que aconteciam no país ao longo da carreira do ponta de lança.
"É um livro de história, principalmente”, diz o autor. “Tive que me colocar em um tempo que não é o meu. Como o historiador Evaldo Cabral de Mello diz: na biografia é preciso calçar os sapatos do biografado. No meu caso são as chuteiras do Barcímio”, complementa o jornalista.
As botinas serviram perfeitamente. Logo na introdução, quando descreve o antológico gol de bicicleta aplicado no São Paulo, e recria todo o cenário daquela tarde na Vila Capanema, em 1968, Moser oferece o que vai ser a tônica nas 367 páginas do livro.
Ao todo, o projeto levou um ano e meio para ficar pronto. Foram incontáveis horas de pesquisa em dezenas de livros e jornais antigos, além de 51 entrevistados, incluindo Galvão Bueno, Geninho, Gérson, Levir Culpi, Nilson Borges e Rivellino. O nível de detalhamento é digno de um gol do Sicupa no finalzinho de um clássico Atletiba. Spoiler: a contagem de gols do artilheiro até aumentou.
“O Sandro incorporou mesmo o livro. Foi pouco mais de um ano em que ele deixou de viver [para se dedicar ao projeto]”, agradece Sicupira. “Ele é esforçado demais, foi para o Rio de Janeiro, para Ribeirão Preto. E, conversando com os caras com quem foi entrevistar, se colocou na história”.
A maior parte da biografia conta, é claro, com os oito anos de Athletico (1968 a 1975) como pano de fundo. Mas a realidade era outra. “Quem vê o Athletico hoje não sabe como foi naquele passado. As alegrias eram tão difíceis de acontecer que tinham mais valor”, destaca o ídolo atleticano.
“Nós víamos fotos antigas, falávamos sobre elas, sobre datas, como era naquele momento. A gente se lembra de muita coisa guardada. E aí você começa a sentir coisas que não sentiu nem na época. Talvez eu não tivesse dado tanto valor para o tempo que fiquei lá [no Athletico] e, principalmente, para o campeonato de 1970”, admite Sicupira.
O título estadual conquistado na última rodada do hexagonal final, diante do Seleto, em Paranaguá, foi a solitária conquista rubro-negra entre as taças de 1958 e 1982. Marcou gerações e o próprio Craque da 8, como Sicupira ficou consagrado.
Sicupira em ação pelo Athletico e a capa da biografia. Foto de fundo: Arquivo GRPCOM.
“Ele se tornou atleticano. E quase um símbolo do que era ser atleticano nos anos 1970, uma coisa meio rebelde, lutando contra as adversidades”, aponta Moser.
Barcímio, revelado pelo Ferroviário, chegou a participar de peneira no Coritiba – o Estádio Belfort Duarte, hoje Couto Pereira, fica a poucas quadras de sua casa, na Rua Fernando Amaro. Franzino, foi reprovado. Ficou a mágoa.
Acabou no Boca-Negra, onde se profissionalizou em 1962. Como desandou a fazer gols, chegou ser tema de uma coluna de Nelson Rodrigues. Dois anos depois, em 1964, se transferiu para o Botafogo, então o "melhor time do mundo", que contava com ícones como Manga, Nílton Santos, Gérson, Jairzinho e Zagallo. A estrela da companhia, Garrincha, virou amigo pessoal.
Lá, Sicupira conheceu outra vida. Saiu do ovo curitibano para a Cidade Maravilhosa. Continuou marcando gols bonitos, conquistou títulos e alternou entre o banco de reservas e a titularidade. Fora de campo, namorou muito, andou de carrão e torrou dinheiro em roupas estilosas.
“Sicupira é um personagem legal porque é complexo. Um cara que se adapta rápido, é camaleão. Se tem uma festa de grã-fino, ele sabe se comportar. Se o pessoal está jogando truco no boteco, também. É um cara engraçado, um personagem adorável”, afirma Moser, que também escreveu sobre outras facetas do ídolo atleticano: filho, pai, avô, comentarista esportivo, universitário, técnico futebol, amigo e mestre de carteado.
Leia um trecho da biografia:
Quando a notícia de que tinha entrado areia na negociação com os coxas chegou à Baixada o diretor de futebol rubro-negro, Airton Araújo, mandou sua secretária ligar para Sicupira.
“Ele me chamou em sua casa e me perguntou sobre defender o Athletico. Eu respondi que sim, claro, que queria ficar em Curitiba, pois estava cansado da situação em Ribeirão Preto.”
Bem-sucedido investidor financeiro, Araújo telefonou no mesmo dia para o presidente do Botafogo. O endividado clube ribeirão-pretano pediu Cr$ 40 milhões, quantia que representava, mais ou menos, o valor pago um ano antes ao xará carioca.
O dia decisivo foi 26 de julho. Araújo voou até Ribeirão e deixou um cheque pessoal, no valor estipulado – cerca de R$ 400 mil em valores atuais. E trouxe o passe de Sicupira dentro de sua maleta 007.
Para efeito de comparação, a quantia é quase a mesma registrada no borderô da estreia de Sicupira, contra o São Paulo, em setembro. Ou seja, a renda de apenas um jogo, com cerca de 14 mil pagantes, equivalia ao dinheiro investido naquele que seria o maior ídolo do Athletico.
Homem da bolsa de valores, Araújo sabia quanto um ativo poderia se multiplicar no tempo. Nesse caso, porém, preferiu não especular e doou o passe de Sicupira ao clube do coração. Se havia alguma dívida a ser quitada, ninguém sabe. Sabe-se, porém, que o investimento atleticano em Sicupira foi zero.
Já o rendimento é fácil de calcular. Uma relação eterna de idolatria, construída por gols em profusão e dedicação ao clube, contando ainda com o título paranaense de 1970 como bônus. Em uma semana, Sicupira voltou para se despedir de todos em Ribeirão.
“Peguei minhas tralhas, o dinheiro dos 15% do passe, vendi uns terrenos que comprei lá e voltei.”
O anúncio oficial aconteceu no dia 5 de agosto, logo após a assinatura de seu primeiro contrato, que tinha duração de um ano. A notícia mereceu apenas um pé de página dos jornais de Curitiba, mais preocupados com a briga entre os cartolas sobre as finais do campeonato.
Da mesma forma como passaram batidas na imprensa as contratações de Washington, Assis, Oséas, Adriano, Kléber, Alex Mineiro e Bruno Guimarães. Na Baixada, a chegada do craque é sempre silenciosa.