O jeito Petraglia de negociar: como o Athletico se transformou no maior vendedor do futebol brasileiro
A reunião aconteceu no escritório do executivo-chefe do Manchester United, David Gill, dentro do lendário Estádio Old Trafford. Era 15 julho de 2003 e Mario Celso Petraglia viajou à Inglaterra para negociar o volante Kleberson, pentacampeão com a seleção brasileira no ano anterior.
A pedido do homem-forte do Athletico, todos os empresários presentes, de olho em fatias da comissão do negócio, deixaram a sala. A tratativa teria de ser direta.
Amistoso com o United, pediu Petraglia. Negado. Parceria entre os clubes? Também negada. A negociação prosseguiu e o valor foi fechado em cerca de 6 milhões de libras – quase R$ 38 milhões na cotação atual. Os ingleses estavam certos que pagariam em três parcelas.
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O dirigente atleticano, então, pediu garantias bancárias. A resposta veio em tom desdém, relembra o então diretor de relações internacionais do Furacão, Alexandre Rocha Loures, encarregado de fazer a tradução para o português.
"Nós somos o Manchester United, nós somos a garantia", disparou Gill.
Um desconfortável silêncio tomou conta da sala e, na sequência, foi Petraglia quem se manifestou. Foi um verdadeiro all-in, jogada do pôquer na qual se aposta tudo de uma única vez.
"Ele disse que estava muito feliz com o interesse no Kleberson, que o jogador queria muito jogar lá, um dos maiores clubes do mundo. Mas que há coisas que o dinheiro não compra e que não iria mais negociar", conta Rocha Loures.
Mario Celso Petraglia, então, fechou sua caderneta de anotações, a colocou em cima da mesa sem nenhuma delicadeza e, em seguida, reclinou-se na cadeira, deixando os dirigentes do Red Devils em parafuso.
Pouco depois, os representantes do Athletico foram encaminhados para outra sala, onde aguardaram alguns minutos – o Manchester United havia aceitado fazer o pagamento à vista, tudo conforme o planejado.
Petraglia, no entanto, permaneceu impassivo. Sua expressão não mudou. O diretor atleticano, atônito, questionou o motivo. Afinal, foi uma das maiores vendas da história do clube e a primeira de um brasileiro para o gigante europeu.
"Negocinho de seis milhões de libras. Estou acostumado a fazer de R$ 150 milhões, R$ 250 milhões", justificou Petraglia, empresário de sucesso antes de revolucionar o clube a partir de 1995.
O negociador
Entre 2014 e 2023, o Athletico arrecadou R$ 746 milhões com vendas de jogadores, colocando-se como o 14º clube do mundo, de acordo com levantamento feito pelo Observatório de Futebol do suíço Centro Internacional de Estudos Esportivos (CIES). É o único time brasileiro no top 50, com lucro de R$ 660,1 milhões no período.
O resultado é uma soma de fatores, que inegavelmente convergem na figura do atual presidente, que completa 80 anos de idade neste domingo (11). Mas na época da venda de Kleberson – uma das primeiras feitas sem participação do empresário uruguaio Juan Figer – o Furacão ainda engatinhava em seu projeto e era pouco conhecido internacionalmente, mesmo já tendo vencido o Brasileirão de 2001 e, estruturalmente, ter erguido o CT do Caju e a primeira versão da Arena da Baixada.
"Pode-se dizer que se tratava de um guerreiro com armas rústicas", aponta Rocha Loures, que trabalhou no clube entre 2003 e 2009, quando acompanhou o estágio inicial na transformação do Rubro-Negro em vendedor protagonista do mercado da bola.
Alexandre Rocha Loures"Hoje o Petraglia tem armas tecnológicas. Tem poder de barganha, pode valorizar bem mais seus produtos, já que há uma estrutura toda por trás. O projeto deu certo... O cara é um negociador nato, o futebol foi só um ambiente em que ele se adaptou após aprender tudo com o Figer, o Carletto [Antônio Carletto Sobrinho]".
O professor
Falecido em 2021, aos 87 anos, Figer foi um professor para Petraglia. Antes de o dirigente tomar as rédeas, o agente liderou diversas negociações de atletas rubro-negros, incluindo as idas dos atacantes Paulo Rink, ao alemão Bayer Leverkusen, e Lucas, ao francês Rennes.
"Com certeza o Sr. Juan é um dos principais responsáveis pela minha trajetória no futebol. O pouco que sei e aprendi foi com ele. Em São Paulo, nos fins de tarde, ia ao escritório conversar com ele", diz Petraglia, em mensagem de WhatsApp enviada à neta de Juan, a empresária Stephanie Figer, no último dia 29 de janeiro e obtida pelo UmDois Esportes.
"Muitas noite saímos para jantar e eu explorei os conhecimentos dele. Seu avô foi gênio do futebol. Todas as inovações aplicadas pelos agentes hoje foram criadas por ele", acrescenta o dirigente.
Apesar da admiração, a parceria comercial não foi eterna. E um dos motivos foi a situação do último pentacampeão que atuava no futebol brasileiro. O objetivo do Athletico era vender Kleberson ainda na janela do inverno europeu, que terminava em janeiro de 2003.
Figer, que havia assinado como representante do jogador com dedo do homem-forte atleticano, não trouxe ofertas de negociação definitiva, apenas por empréstimo. Petraglia rechaçou os ingleses Newcastle e Leeds, além do escocês Celtic, porque "jogador campeão não se empresta".
Na incursão ao Noroeste da Inglaterra, em junho, Petraglia assumiu as conversas. "Ele soube criar uma maneira de se livrar da figura intermediária chamada empresário. Esqueceu o Juan Figer e outros. Com isso, o clube passou a ficar com um valor agregado maior. Sempre foi pessoalmente negociar", lembra o ex-presidente João Augusto Fleury da Rocha, parceiro desde o início da revolução atleticana, em 1995.
Visão milhas à frente
Para Fleury, o diferencial de Mario Celso Petraglia é aliar sua perspicácia e raciocínio "milhas à frente", com conhecimento profundo, fruto de horas de estudo e dedicação.
Em 1998, por exemplo, o fim da Lei do Passe mudou completamente a hierarquia da relação clube/atleta. A divisão em direitos econômicos e federativos transformou os jogadores em ativos financeiros acima da representação técnica do campo.
João Augusto Fleury da Rocha"E ativos financeiros são passíveis de avaliação econômica. Com isso, ele [Petraglia] aplicou no futebol as mesmas leis que regem o mercado. O futebol é uma extensão desse mercado, e disso ele sempre entendeu. Tem formação acadêmica em contabilidade, administração, direito e economia, além de uma prática enorme em uma empresa bem-sucedida, que foi a Inepar".
Em 2000, o Athletico negociou o atacante Lucas com o Rennes. O preço final foi de US$ 21 milhões. "Dormi na Inter de Milão e acordei no Rennes. Com as propostas que tinha em mãos, ele fez uma negociação de mestre", comenta Lucas, que por gratidão chama Petraglia de "meu pai".
O negócio, porém, nunca foi explicado em detalhes pelo clube. De acordo com reportagem de 2011 da Gazeta do Povo, o centroavante fez uma ponte no Rentistas, do Uruguai, que pagou R$ 13,3 milhões por 50% dos direitos econômicos do jogador, em 2000.
O time do país vizinho – ligado a Juan Figer – já tinha 50% dos direitos o camisa 9, adquiridos do Furacão em 1998 por R$ 500 mil. Um dia após ficar com a totalidade dos direitos, completou a negociação com a equipe francesa por R$ 37,3 milhões, na cotação da época.
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"Quando acordo no outro dia, pego a passagem para ir a Paris, depois o jatinho para ir para Rennes, onde me encontrei com o Petraglia. Sem dúvida, é o maior negociador de todos os tempos do futebol brasileiro", crava Lucas.
A negociação do lateral-direito Alberto, em 1999, também passou por roteiro similar. Na época da eleição do clube em 2011, a chapa CAPGigante justificou, sem citar a ponte no Rentistas, que ambas as negociações "injetaram cerca de 10 milhões de dólares nos cofres do Furacão, que foram utilizados para liquidação da dívida que havia ficado após a conclusão da Arena, em junho de 1999".
"Todas essas questões foram auditadas. O Mario sempre foi colocado sob suspeita de obter vantagem para si na intermediação, mas são coisas típicas da fofoca do meio do futebol. O Athletico, na minha gestão, tinha a auditoria de duas grandes empresas", defende Fleury.
Percepção e frieza
No futebol, a capacidade de negociação de Petraglia vai muito além da venda de jogadores. Ele percebeu, por exemplo, a proximidade do boom do mercado de streaming muito antes de outros dirigentes, tanto que optou por não negociar com a Globo em 2019 para manter os direitos com o clube.
A partir da mudança de lei via Medida Provisória, em 2020, o Athletico se viu como o único time do Brasileirão negociando a transmissão de suas próprias partidas.
"O Petraglia vê na frente, tem capacidade gerencial, conhece o mercado e é bom negociador. E é muito frio. Isso é talento", elogia o advogado Luiz Fernando Pereira, que virou amigo pessoal durante os nove anos até a resolução da dívida da Arena.
De acordo com Pereira, o próprio dirigente lhe confidenciou certa vez qual a principal característica que um bom negociador precisa ter.
"É a capacidade de perceber que quem está do outro lado não voltará atrás na ideia de fazer o negócio, de que a chave virou. Quando ele percebe isso, pode aumentar o valor se está vendendo ou diminuir se estiver comprando".
Outra característica é que Petraglia nunca fixava um preço para os jogadores, recorda Rocha Loures. Quando a proposta chegava, era rechaçada de cara caso não fosse a ideal. O processo se repetia até que o montante chegasse ao patamar de fechar negócio.
Nas vendas de Fernandinho e Jadson para o ucraniano Shakhtar Donetsk, em 2005, o dirigente já se preocupou em permanecer com parte dos direitos econômicos planejando a receita de uma futura venda.
Em outro caso, da negociação do lateral-esquerdo prata da casa Jean Carlos Dondé ao Feyenoord, dois anos antes, conseguiu o promissor Michel Bastos como moeda de troca.
Depois, Bastos foi negociado com o Lille, e de lá ao Lyon. O Athletico ganhou muito mais com os 20% mantidos do que com a venda inicial, tudo conforme previamente planejado.
Não faltam exemplos de ótimas vendas: Bruno Guimarães (20 milhões de euros) e Renan Lodi (21,75 milhões de euros), sem falar na transferência mais recente – e mais lucrativa da história do Rubro-Negro – a de Vitor Roque. Com bônus por performance, a quantia paga pelo Barcelona pode alcançar R$ 390 milhões.
"O Mario é um super-agente Fifa. Ele não tem essa certificação, essa titulação, mas seria um mestre para quem quisesse trabalhar como empresário de jogadores", fecha Fleury