Futebol S/A

Tudo o que você precisa saber antes de ver a coletiva de Petraglia sobre Athletico S/A

Por
Irlan Simões, especial para o UmDois Esportes
06/11/2021 14:45 - Atualizado: 04/10/2023 17:21
Tudo o que você precisa saber antes de ver a coletiva de Petraglia sobre Athletico S/A
| Foto: Albari Rosa/Arquivo/Gazeta do Povo

O futebol é feito de tomadas de decisões. Demitir um treinador, contratar um jogador desconhecido, focar recursos na melhoria da estrutura, dar espaço para a base etc. Nesse quesito o futebol brasileiro sempre apontará a eficiência das tomadas de decisão de Mario Celso Petraglia.

Nem o mais ferrenho dos seus opositores seria capaz de deixar de reconhecer a proeza do presidente do Club Athletico Paranaense em fazer de uma equipe periférica do país – com recursos muito inferiores aos adversários dos quatro grandes estados – uma das principais forças do futebol nacional no século XXI.

Acontece que, de um dia para o outro, Petraglia decidiu forçar o sócio rubro-negro a tomar, praticamente às cegas, uma decisão que vai – para o bem ou para o mal – mudar completamente a história do Athletico: aceitar ou não a transformação do Furacão em “Sociedade Anônima do Futebol”.

E aí, nem o seu mais fiel apoiador seria capaz de deixar de
reconhecer o outro lado da moeda do dirigente rubro-negro: o mandatário
autoritário, crente de ser maior que a instituição, insensível ante a própria
comunidade – aquela coisa chamada “torcida” que fez o CAP existir ao longo de quase
um século.

Através do presidente do Conselho Deliberativo, o Athletico
convocou (no dia 3 de novembro) uma Assembleia Geral Extraordinária (a ser
realizada no dia 11 de novembro), para “deliberar
sobre a seguinte Ordem do Dia: “Autorizar
o Conselho Deliberativo a conceber
modelo e praticar todos os atos
necessários que visem a implementação no
Club do regime jurídico de uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF)".

O sócio não vai assistir a uma apresentação, tampouco vai
apreciar um projeto, sequer vai conhecer propostas, muito menos opinar sobre algo.
O sócio do Athletico foi convocado para dizer “vai lá” para o Conselho
Deliberativo, que será, esse sim, responsável por votar tudo que envolve a tal
S.A.

O mesmo Conselho Deliberativo que por sua vez sempre disse “vai lá” para quase tudo que Petraglia pediu nos últimos tempos. Até a alteração completa – também às cegas – dos principais símbolos do clube.

Caso antigo e timing

Já ao final da tarde de sexta-feira (5) – não se sabe se em
reação às críticas ou por estratégia política, veremos – o clube soltou no seu
site oficial que “o presidente do Conselho Administrativo e atual CEO do
Athletico Paranaense, Mario Celso Petraglia, participará de uma live para
explicar o interesse do CAP de se transformar numa Sociedade Anônima do Futebol
(SAF)”. Sócios do clube e a imprensa poderão enviar perguntas para um e-mail,
as quais serão devidamente selecionadas para serem respondidas na tal live.

Desde 2016 Petraglia fala com ênfase e constância em transformar o então Atlético Paranaense em “clube-empresa”. Nos últimos anos, apoiou publicamente a Lei das SAF (5.516/19), sendo inclusive reconhecido, como consta carta publicada no site oficial do clube, como um dos grandes colaboradores do trabalho do relator Carlos Portinho nessa empreitada.

Logo, se não estamos falando de um anseio que não é novidade
para ninguém, também não estamos falando de uma proposta que nasceu nos últimos
meses. Desde 2018 já se anunciava a elaboração de um projeto de SAF – que só
aguardava a aprovação de uma nova legislação, como o ocorreu à Lei das SAF em
agosto de 2021.

Em três anos, ao que parece, ninguém – além de Mario Celso Petraglia, seus aliados mais próximos e a EY (consultoria contratada para o projeto) – teve qualquer informação sobre as pretensões, o modelo, os possíveis investidores, os limites impostos para os acionistas, as regras para blindar e proteger o patrimônio do clube... Nada. Apenas uma convocatória para dar um “amém” – porque a lei exige.

De forma idêntica ao que ocorreu na ocasião da mudança da identidade e nome do Athletico, o mandatário do clube se aproveita de um bom momento dentro de campo – e às vésperas de uma decisão, como se apelando para a superstição – para “saltar” as etapas mínimas das deliberações do clube. Não existe discordância ou proposta alternativa se não há espaço para debate.

Mas agora não é apenas o escudo, um “H” no nome ou o padrão
do uniforme principal. Estamos falando do fim do Athletico enquanto clube para
se tornar em uma empresa com donos.

Qual o problema?

Por estar acompanhando o ressurgimento desse debate desde 2015 – quando a aprovação do Profut por pouco não envolveu a conversão compulsória dos clubes em S.A’s –, dediquei o ano de 2020 para organizar a obra “Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol” (Corner, 2020).

O motivo era simples: a completa ausência de uma perspectiva
sincera, menos ideologizada e mais concreta sobre a realidade dos clubes de
futebol em todo o mundo. Muito longe dos cases
sempre repetidos nos materiais à disposição do público brasileiro – PSG, City,
United, Bayern, Red Bull, etc –, pareceu mais do que urgente fornecer um
material denso com casos reais, pouco midiáticos e completamente distintos
daquilo que estava sendo apresentado para o público do futebol brasileiro.

São 21 autores e 14 artigos que contam uma história bem mais
complexa. O modelo jurídico de “sociedades anônimas”, por si só, se mostrou
incapaz de fornecer os ditos avanços no plano da gestão. Na verdade, o futebol
como um todo se mostra um ambiente muito controverso se estivermos falando de
“negócio”.

SA’s não são perfeitas. Clubes do mundo inteiro vão à falência todos os anos, mesmo nas ligas mais ricas e estruturadas do planeta. A Itália tem mais de 50 casos de clubes falidos; mais de 40 clubes da Espanha já entraram em concurso de credores em algum momento; na Inglaterra diversos clubes já foram comprados por uma libra, com o repasse de dívidas impagáveis; o futebol no Chile está mais endividado hoje do que estava quando era feito de associações.

São muitas as histórias pouco ou mal contadas por aqui.
Ainda que o modelo associativo seja altamente criticável pela possibilidade de
contaminação da gestão do futebol pelas contendas políticas que o formato
permite; não falamos em qualquer momento sobre os problemas que só existem em
estruturas como sociedades anônimas no campo do futebol: igualmente passíveis
de contendas políticas, ainda que de ordem distintas.

Parece ser esse o ponto mais importante. Mesmo que estejamos
falando do Athletico, um clube com índice de acerto altíssimo e que faz muito
com pouco, muito mais complexo do que olhar o lado positivo (a entrada de um
“investidor”), é analisar como o clube aprovará a entrada de um ou mais
“sócios” do seu negócio.

As experiências descritas no livro “Clube Empresa”, acima
mencionado, nos levam a questionar a própria figura do “investidor”. Um aporte
financeiro é sempre bem-vindo, claro, mas não é uma doação. É uma contrapartida
de cessão de poder de decisão ou o comprometimento financeiro eterno – o que
pode entrar sempre em rota de colisão com o resultado esportivo.

Definitivamente não estamos preparando o futebol brasileiro
para essas possibilidades. O modelo de clubes com acionistas abre brechas
desconhecidas ou, pior, péssimas experiências perdidas no esquecimento.

Entretanto...

Petraglia já repetiu algumas vezes que seu objetivo é
“trazer um parceiro”, o que indica algo bem diferente de entregar o controle
dos ativos do clube para um eventual comprador de ações. A julgar pelo seu
histórico comportamento à frente do Athletico, é muito difícil imaginar que a
SAF será criada de modo a fazê-lo perder o controle de qualquer coisa dentro do
clube.

Da mesma forma que o estatuto do Athletico não se alterou
para acabar com as eleições por “chapões” – que formam aqueles Conselhos
Deliberativos que só dizem amém, tão comuns no Brasil –, a própria composição
de um eventual Conselho Administrativo da SAF provavelmente será concebida para
que Petraglia conserve o seu poder. Alijar a associação (o clube) do controle
da SAF não necessariamente implica na perda de poder da parte do atual
presidente.

São muitos os caminhos possíveis, e no Brasil foi exatamente o que ocorreu ao Bahia e ao Vitória no início da década de 2000. No primeiro, o clube se esvaziava à medida em que a S.A era tomada pelo grupo brasileiro Opportunity, fortes aliados da diretoria do Tricolor; no Rubro-Negro, o próprio presidente do clube se tornou presidente remunerado da S.A., com gordos bônus, em acordo com o grupo argentino Exxel, que se tornou controlador. (Sugiro que pesquise onde estavam os dois clubes em 2006).

Em um sentido mais amplo e menos especulativo, é possível imaginar
que o Athletico terá um modelo comparável aos principais clubes de Portugal,
que também é o modelo obrigatório dos clubes alemães: a associação fundadora do
clube detém maior parte das ações e controla a sociedade. Logo, o presidente da
associação acaba por consequência sendo o presidente da S.A.

Olhando do ponto de vista de quem será convidado a ser
“parceiro” – o que parece que o clube já tem definido – há uma diferença
considerável entre compor uma sociedade e participar da cadeia de tomadas de
decisões de um clube de futebol. São raros os clubes em que o controle da
sociedade está disperso em muitos acionistas (geralmente os espanhóis, mas por
uma particularidade local).

O modelo português/alemão, entretanto, não acaba com um dos principais pontos de crítica de Petraglia – e talvez pontos fracos dessa luta pela eternidade: continua garantindo importância central à eleição dentro do clube. O peso político dos sócios só seria brevemente reduzido pela existência de outra esfera de poder, que é o Conselho de Administração – onde o clube e acionistas disputariam determinadas decisões.

Dito isso, até onde conhecemos Petraglia, é muito provável que o seu projeto pretenda lhe dar ainda mais longevidade no poder. Com paulatina redução da necessidade de prestar contas a outros sócios.

Como lidar?

A questão mais importante ao torcedor do Athletico é ter a capacidade de pensar em longo prazo. O que será do CAP, ou mais, do CAP S/A quando Mario Celso Petraglia, 77 anos, já não estiver mais em condições de estar à frente do clube?

Tentativas de tomada do vácuo deixado por dirigentes vencedores-porém-autoritários são sempre muito conturbadas. Não parece que o rubro-negro está se preparando para pensar nessa possibilidade. Uma decisão desse porte, tomada hoje, caso fracassada, não se resolve tão rapidamente.

Nesse momento, o que indica que o clube realmente precisa
entregar parte dos seus ativos para alguém de fora? Em quais circunstâncias
virão esses ditos “investimentos”? Quais os mecanismos serão criados para
blindar a Arena, o CT do Caju e todos os atuais e futuros patrimônios do clube?

A história recente do futebol mostra como clubes foram muito visados pelo valor (especulativo) do terreno de seus patrimônios. Estádios históricos foram vendidos para virar moradia, ao troco de uma nova arena que desterritorializou e mudou completamente a relação da torcida com o clube. Como proteger o que a massa rubro-negra ergueu ao longo de quase um século? Isso precisa ser apresentado antes da convocação de uma assembleia.

Por outro lado, qual o tamanho desse possível e pretenso
“salto” que um “dinheiro novo” poderia oferecer? Seu “público consumidor” ainda
é regional e dificilmente deixará de ser. Por mais que o Athletico passe a ser
um contumaz vencedor de títulos, é muita inocência acreditar que isso será
suficiente para reverter décadas de privilégios midiáticos dos clubes do Rio e
São Paulo. Basta observar como Galo, Cruzeiro, Inter e Grêmio nunca conseguiram
alcançar o status de clube nacional, não obstante seus títulos.

Outra força estrutural incontornável é a própria condição
macroeconômica. O futebol brasileiro não vai reverter a discrepância financeira
com o centro do futebol europeu. Crescer o poder financeiro do Athletico pode
surtir um efeito pontual aqui e acolá, mas não será possível evitar a saída de
atletas para o centro do futebol global. Contê-los até que valham o suficiente
e para que sejam vendidos por valores maiores, sim, talvez, mas é irreal
acreditar que vamos inverter os polos da indústria global do futebol a favor do
Brasil.

É dizer: entre o que se deseja e o que se pode fazer existe
um universo de verdades incômodas.

Caberá ao torcedor do Athletico lutar, ainda que pareça
tarde ou impossível, para que mecanismos de segurança sejam elaborados e colocados
claramente tanto no estatuto do clube, quanto no estatuto da SAF. Não se trata
de rechaçar por inteiro a SAF, tampouco se negar a perceber certas vantagens
possíveis da chegada de um novo parceiro, mas de preservar o que não cabe nas
“valuations”.

É totalmente compreensível o otimismo gerado pelos bons resultados em campo, pela capacidade gerencial do mandatário e pela sedutora possibilidade da chegada de um “investidor estrangeiro” (esse anjo que desce do céu). Só não se pode vacilar com a realidade concreta do futebol atual: os problemas dos clubes com acionistas são muito mais complexos do que estamos habituados ouvir falar.

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